Talvez pelo fato de eu sempre ter gostado bastante de viajar, também sempre gostei muito do gênero de filmes conhecidos como road movies. É impressionante como, durante uma jornada quase claustrofóbica, onde por mais que mudemos o cenário exterior sempre terminamos dentro de um carro ou ônibus com as mesmas pessoas, adquirimos experiências que nunca adquiriríamos caso estivéssemos em casa ou no trabalho. De uma jornada destas é difícil saír incólume. No mínimo algumas boas histórias entrarão no repertório.
Agora, quando somamos a este já rico gênero um tema polêmico, a experiência se torna ainda mais rica. E quando este tema é explorado sem paternalismos ou discursos dogmáticos, o produto final consegue o impressionante feito de não apenas ser um entretenimento de primeira, mas também instigar o espectador ao raciocínio, levantando questões que normalmente não nos preocuparíamos.
Assim é Transamerica (Idem, 2005), lançado recentemente em DVD para locação. Na história conhecemos Bree (Felicity Huffman, da supervalorizada série Desperate Housewives, completamente irreconhecível), que está a um passo de uma grande transformação em sua vida quando descobre que tem um filho de 17 anos no outro lado do país, e que ele precisa de sua ajuda. Apenas isso já seria o suficiente para gerar uma boa trama, mas há um complicador: Bree na verdade é Stanley, portador de disforia transexual. Ou seja, uma mulher que por acaso nasceu com o corpo de um homem. E a grande transformação é a aguardada cirurgia de mudança de sexo (onde, como ele(a) mesmo diz, o(a) transformará no que realmente é). Além disso, seu filho é um adolescente problemático, envolvido com drogas e prostituição.
Inicialmente reticente em encontrar o tal filho, Bree é finalmente convencida pela terapeuta a acertar o caso antes de se submeter à cirurgia. Isso a leva até Nova Iorque, onde é obrigada a confrontar-se com a dura realidade do garoto. Como não tem coragem de assumir a paternidade ao filho quando finalmente o encontra, o filme cria um núcleo cômico instigante, mesmo que trágico, que será explorado ao máximo durante a longa travessia de Nova Iorque até Los Angeles.
O filme mistura com maestria os tons cômicos e dramáticos da trama, sem nunca cair na pieguice ou na caricatura, apesar de não faltarem chances. Bree é uma personagem riquíssima, que lida com o medo e a própria situação com cinismo e ironia, ao mesmo tempo que faz questão de demonstrar possuir mais sofisticação que a maioria das pessoas. Mas os eventos que se sucedem em sua jornada apenas servem para provar que na verdade ela é uma pessoa frágil e dividida psicologicamente, que usa estes artifícios como escudo. Interpretada de maneira inspiradíssima por Felicity Huffman (o que lhe valeu com muita justiça o Globo de Ouro), Bree é na verdade um poço de angústias e traumas, mas não conseguimos evitar de simpatizar com ela, e até mesmo sorrir em seus momentos de maior desespero. O resto do elenco também está ótimo, mas o destaque fica por conta da experiente Fionnula Flanagan, que interpreta a mãe angustiada de Bree/Stanley. Suas cenas estão entre as mais engraçadas e pesadas do filme (como na cena em que ela sugere que Toby, o filho de Bree, passe a morar com ela, ao mesmo tempo em que fecha as janelas da casa, numa metáfora visual admirável em sua sutileza).
Optando por um tom leve, mas sem medo de cutucar feridas abertas da sociedade, o diretor e roteirista Duncan Tucker acerta a mão em seu filme de estréia. É um filme que agradará a todos que assistirem, independente de suas posturas ideológicas. Arrisco dizer que até mesmo a mais homofóbica das criaturas irá apreciar o tom de auto-descoberta da história, que não se limita a um tema polêmico (o transexualismo é visto de maneira quase natural, sem forçar a barra), diferente de filmes semelhantes, mas inferiores, como o engraçadinho Priscilla- A Rainha do Deserto e o pavoroso Para Wong Foo, Obrigado por tudo. Julie Newmar (que quase me fez arrancar os globos oculares depois de ver Wesley Snipes travestido).
Ao final do filme minha esposa me perguntou: "Você é capaz de escrever uma história assim tão inteligente?".
Eu espero sinceramente que um dia eu seja.
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