03 dezembro 2008

Anticlimático

Acordo junto com a neblina que, na certeza do sono interrompido, parece ter se originado de meu cérebro macilento. Não há como divisar nada além de alguns palmos para fora da janela. Mesmo assim esfrego os olhos. Não dá certo. Minha cama aos poucos perde o calor de meu corpo recém descoberto. Entro no banheiro e ligo o chuveiro, desviando dos respingos gelados em minhas canelas e quase escorregando e caindo por conta da dança bisonha. Apenas quando a neblina interior rivaliza com a externa tomo a coragem e o banho necessários. O couro cabeludo se espreme num calafrio dolorido. Banho no frio é como comida mexicana. Difícil de entrar, pior de sair. Mas o meio termo até que é agradável.

No trânsito vejo os primeiros raios de sol se esforçando para irromper as camadas de vapor, fuligem e preguiça, sinalizando a inevitabilidade do dia que recém começou. A rua está permeada de caras amassadas enlatadas em seus contêineres de aço e vidro. Alguns se escondem atrás de janelas fumê, trancando-se num microverso veicular onde enfiar o dedo no nariz não é falta de educação. Falsa segurança transitória. Neste fluxo é tão difícil encontrar sorrisos quanto faixas de sol, mas eles existem. Estão lá, frutos de noites não tão frias ou de promessas de dias mais ensolarados.

Quando finalmente estaciono essas promessas ainda não se concretizaram. O edifício se ergue à minha frente com outras promessas, mais cinzentas, mais sisudas. Haverá risadas esparsas, isso é certo, mas sei bem que tudo não passará de uma estratégia, de um escapismo involuntário. Sol e chuva sem desencalhar viúvas. Faltam ainda quatro horas para o almoço.

Para muitos a hora do almoço é a única chance de ver o sol durante todo o dia. Para mim ao menos é. Saio pela portaria e aciono minha pequena usina de vitaminas. Minha pele chega a brilhar, a palidez como que querendo fugir de sua prisão epitelial. Blusas e jaquetas são repentinamente esquecidas. Óculos escuros e sorrisos espontâneos por um instante reencontrados. Decotes abertos e mangas arregaçadas. Cada trecho de pele descoberta é uma janela aberta à invasão anti-mofo. Tudo tem luz nesta nossa fotossíntese social. Por meia hora o mundo aparenta ainda ter esperanças.

Infelizmente somos obrigados a retornar ao ambiente falsamente climatizado. Pasteurizado. Mormacento. As horas se arrastam pela atmosfera pesada. Como sempre, no final da tarde o tempo fecha. Prazos, compromissos, broncas. Nuvens escuras se encarregam de esconder o sol relutante. Alguém enumera os quilômetros de trânsito, colocando todos no habitual paradoxo do vou-não-vou. Mas dá a hora e vamos. Junto com a chuva.

Enquanto escorremos lentamente pelas vias os rostos se tornam borrões indistintos na profusão de respingos. Onde havia pouca vida agora não há nenhuma, sugada e exaurida pelo dia que poucos na verdade viram. O sol desiste de nós e se esconde atrás dos dendritos do horizonte, procurando por novas vítimas para insuflar com falsas promessas. A chuva pára antes de nos lavar a alma. Algumas janelas são abertas para que o ar úmido substitua o viciado. Onde o medo ainda é mais forte que o asco do vício elas permanecem fechadas. Abro a janela assim que saio das zonas cumulares e me aproximo de meu condomínio.

Após grunhir uma saudação ao porteiro e aos transeuntes de elevador entro em casa e precipito a mala, a carteira, o celular e o meu corpo pelo recinto. Os céus arrotam mas não choram mais. A temperatura cai. O telefone toca. Um diálogo cheio de instabilidades passageiras. Mas o resultado é tão previsível quanto uma frente fria argentina. Tanto que meia hora mais tarde o interfone relampeja. Pode subir.

Ela entra sem tocar a campainha. Torrencial como sempre. Encontra-me ainda nublado no sofá. Como sempre não se importa com meu desprezo ou com minha alegria. Simplesmente chega. E depois irá embora igualmente indiferente. Naturalmente. Mas disfarça a tempestade vindoura com amenidades.

- Está frio hoje, hein?

- Estou.

E amanhã será outro dia.

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Republicado por sua causa.