12 abril 2010

Colméia


Nós pousa. Mãe sabe. Mãe sentiu impacto quando nós sentiu. Nós sai. Nós engasga. Ar pesado. Muito oxigênio. Nós cai um. Cai dois. Nós volta. Mãe dá bronca. Nós é dispensável. Nós são nós, não é malha. Malha não desfaz com queda de alguns nós. Mãe manda respirar fundo. Nós obedece. Nós cai três, quatro. Mãe manda ficar. Nós fica. Cai cinco, cai dez, cai cem. Nós continua. Mãe manda. Nós fica. Nós não tem medo. Nós sente mudança antes de mãe avisar que nós vai mudar. Nós respira. Nós adapta. Nós sobrevive.

Nós invade.

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Texto escrito durante a oficina "O conto de ficção científica", ministrado por Nelson de Oliveira, e publicado a pedidos.

03 abril 2010

Uma Ideia Hipotética (Parte Final)


Seu nome era Metafórico. Ele era um cidadão hipotético vindo da classe trabalhadora, estereotipado como todo o resto. Mas quando chegou na idade madura, percebeu que algo estava errado, que havia algo ruim na verdade proferida pelos seguidores do Novo Estereótipo. Começou a juntar pessoas que pensavam como ele e caminhou pelas vilas espalhando sua palavra de revolta. Infelizmente, foi preso pelos Ortodoxos, graças a uma traição de Expiatório, um de seus seguidores mais fervorosos. Após um curto julgamento, foi torturado e morto.

Usurpador, outro dos seguidores, percebeu que poderia transformar a figura de seu antigo líder em um autêntico mártir hipotético. Juntou-se a outros antigos seguidores e começou sua pregação, fugindo para terras onde o poder dos Estereótipos ainda não havia chegado. Lá, Usurpador e os outros escreveram a hipotética história de seu mestre. Assim surgiram os Evangelhos Metafóricos, que seriam a base para a nova Instituição que se seguiria.

Com o passar dos anos Estereotipados e Metafóricos iam se espalharam pelo mundo conhecido. Tiveram contato com outros povos, que imediatamente consideraram novos Heterodoxos, cada um à sua maneira. Guerras se seguiram, com milhares de mortos. Os Estereotipados acabaram expulsos do Vale da Hipótese pelos Beligerantes, antigos proprietários daquelas terras, e sua guerra se estende por séculos.

Alheios a isso, os Metafóricos continuaram a crescer. Eventualmente seus seguidores acabaram por cometer os mesmos crimes que vitimaram seu mártir, mas poucos se importaram com isso. Descendentes do Usurpador original perceberam que haviam grandes falhas nos Evangelhos Metafóricos, e histórias que não deviam ser ditas, pois contradiziam seus interesses mais diretos. Por essa razão re-escreveram os textos, criando o Novo Evangelho Metafórico, revisado e com diversos cortes (o maior dele foi o capítulo escrito por uma discípula ferrenha, Apócrifa, que alegava ter tido um caso tórrido com Metafórico). E, graças a um período onde apenas os líderes metafóricos sabiam ler e escrever chamado Idade Excessivamente Romantizada, a ideia funcionou. Os Metafóricos enriqueceram e devido a isso diversos grupos dissidentes surgiram (primeiro os Reclamantes, que queriam uma parte dos lucros para eles, depois os Fantasmagóricos e finalmente os barulhentos Hipócritas), graças aos cada vez menos claros Evangelhos Metafóricos. Os Estereotipados, por sua vez, mesmo sofrendo uma perseguição ou outra, também prosperaram, especialmente graças a uma forte campanha publicitária.

Essa história não termina. E poucos se recordam dos tempos antes das ideias hipotéticas, estereotipadas ou metafóricas, onde todos eram felizes, mesmo apesar dos problemas, pois ninguém precisava usar mentiras e invenções para responder às pertinentes questões de Metafísica.

02 abril 2010

Uma Ideia Hipotética (Parte 2/3)


– Eu tenho as respostas para as questões de Metafísica! – Berrou o velho Estereótipo, fazendo uma pequena pausa dramática enquanto esfregava as mãos e sorria com o canto da barba. – Descobri que somos criação de uma divindade assombrosa, uma criatura tão sábia e poderosa que não só criou todos nós, mas também todo o mundo, o céu e as estrelas. E, assim que cheguei a esta conclusão, ele pessoalmente surgiu à minha frente e me explicou de onde viemos, para onde vamos e porque estamos aqui. É por isso que voltei, para redigir estas instruções, para que sejam seguidas por todos nós.

– E qual o nome dessa divindade? – perguntou Cético, pouco satisfeito com a explicação.

– Ele não tem um nome, mas como ele se manifestou a um de nós creio que podemos considerá-lo um dos nossos. Desta maneira vamos chamá-lo, a partir de hoje, de Deus Hipotético.

A vila, com exceção de Cético, que ainda não estava completamente satisfeito, exultou e uma grande festa se seguiu. Estereótipo levou meses para finalizar o que chamou de Evangelhos Hipotéticos, e rapidamente aquelas palavras se tornaram verdades absolutas, afinal, haviam sido ditadas pelo Deus Hipotético em pessoa! Os ensinamentos de Estereótipo traziam a chave para a felicidade não só terrena, mas também celestial. E os cidadãos hipotéticos os seguiam à risca.

A vila prosperou nos anos seguintes. Estereótipo, que já não era nenhum moço, adoeceu e caiu de cama. Seu jovem aprendiz, Coadjuvante, cuidou dele o tempo todo. E quando estava às portas da morte, Estereótipo chamou-o ao pé de seu leito.

– Coadjuvante, já é hora de você tomar conta de tudo. A mensagem foi passada, e só tenho mais um ensinamento a transmitir antes de minha morte.

– Sim, o que é mestre?

– Eu nunca falei com porcaria de divindade nenhuma – Pausa para a tosse. – Nada do que está escrito sobre isso nos Evangelhos Hipotéticos é verdade. Eles precisavam de respostas que eu não podia dar, e simplesmente inventei-as. Eles ficaram felizes com minhas mentiras, e pude manipulá-los para alcançar a paz que tanto prezamos. É hora de você continuar com essa história. Abandone o nome que tens, e adote um novo. A partir de hoje, deixas de ser Coadjuvante e torna-se Protagonista. – E em seguida o velho morreu.

O recém nomeado Protagonista ficou ao lado de seu mestre por bastante tempo, meditando a respeito do que acabara de ouvir. Horas depois saiu da casa e convocou nova reunião, onde contou que, no leito de morte do velho Estereótipo ele recebeu a visita do Deus Hipotético em pessoa, que o nomeou como seu sucessor. Portanto, a partir daquele dia ele seria o Novo Estereótipo, o representante terreno do Deus Hipotético.

E como primeira medida, Protagonista revisou os Evangelhos Hipotéticos, adequando-os à nova realidade. Criaram-se assim os Evangelhos Estereotipados, que alguns (liderados principalmente pelo filho de Cético, Crítico) viram como um veículo para que Protagonista tivesse mais poder, mas eram uma minoria, e logo suas vozes foram abafadas. Em poucos anos a Instituição criada pelo Protagonista já englobava não só a vila Hipotética, mas também todo o Vale da Hipótese. E sua palavra era lei, mesmo quando poucos entendiam suas razões. Protagonista enriqueceu e prosperou, mesmo sua terra ficando cada dia mais empobrecida e abandonada. Mas a isso ele retrucava que de que adianta uma fartura nesta terra, se o que realmente interessava era a eternidade ao lado de nosso querido Deus Hipotético?

E a maioria aceitava muito bem esse destino redentor. Com o crescimento desenfreado do número de fiéis, o Novo Estereótipo logo tratou de nomear ajudantes entre os que provavam sua verdadeira fé mais fervorosamente, que ele chamou de Ortodoxos. A eles era dada a missão de converter os infiéis Heterodoxos, que lutavam pelos antigos ideais do Velho Estereótipo, por bem ou por mal. Foi uma época triste, com muitos supostos Heterodoxos sendo torturados e mortos. Cético e seu filho Crítico não escaparam, assim como seus primos diretos, Racional e Coerente.

Até que, certo dia, um rapaz com ideias novas surgiu.

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(Conclui amanhã)

01 abril 2010

Uma Ideia Hipotética (Parte 1/3)


(Já que o assunto é mentiras...)

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Era uma vez uma vila chamada Hipotética. Nesta vila viviam diversos moradores (Hipotéticos), com todos os problemas comuns de todos os dias, mas eles eram felizes. Caçavam, pescavam,
plantavam, cantavam, e viviam. Ocasionalmente envolviam-se em disputas e brigas por pequenos surtos de ganância e mesquinharia, mas estas eram raras e os prejuízos insignificantes.

Até que certo dia um morador começou a fazer algo que não era muito usual: perguntas. Seu nome era Estereótipo, e graças a sua grande capacidade inquisitória em pouco tempo ele tornou-se conhecido como a pessoa a quem deveriam recorrer em caso de dúvidas, pois, além de perguntas, ele buscava incansavelmente por respostas.

Eis que, certo dia Estereótipo foi visitado por três aldeões com perguntas esquisitas. Por que existimos, de onde viemos, para onde vamos, é bonito lá? Estereótipo, que até então nunca havia se preocupado com essas questões, voltou-se para a mulher que aparentemente os liderava: – Minha cara senhora, qual seria seu nome?

Metafísica, respondeu. E ao seu lado estavam Mero, o Figurante e Vaca, de Presépio. “Mas eles não são de falar muito”.

Estereótipo esfregou a icônica barba grisalha, avaliando se teria condições para responder àquelas perguntas de Metafísica. Pensou mais um pouco e então, esmurrando a mesa, exclamou que não sabia. Pombas!

Os aldeões saíram correndo, envergonhando o velho Estereótipo, que naquele momento decidiu que não daria as costas às perguntas de Metafísica. Imediatamente colocou-se a pensar, estudar e resmungar. Dias depois, sem encontrar as respostas que buscava por conta própria, decidiu retirar-se até um monte próximo, onde meditaria em jejum até encontrar explicações. Sentou-se embaixo de uma árvore frondosa por dias, semanas, trazendo preocupação aos aldeões hipotéticos, pois o sábio Estereótipo definhava a olhos vistos.

Mas ele não morreu. Num dia especialmente chuvoso retornou à vila e chamou todos os habitantes para uma reunião em sua casa. Lá, refeito após um farto banquete, bradou aos ventos:

– Eu tenho as respostas para as questões de Metafísica!

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(Continua amanhã)