13 setembro 2013

Jurandir


Nunca chamei Mãe de “maínha”. Nem de “mãezinha” nem de “mamãe”. É só Mãe mesmo, substantivo próprio, com inicial maiúscula e tudo o mais. Construiu sua força com muita bordoada que levou da vida. Mas nunca caiu de cabeça baixa. Engoliu orgulho e lágrimas junto com farinha de rosca, por muitas vezes a única coisa que sobrava pra comer. Chicão, o marido dela, fazia uns bicos na padaria. Trazia pão velho todo dia. De vez em quando alguma mistura. Lascas de queijo, mortadela e presunto que ele juntava dos lados da fatiadora. O dono da padaria não gostava que ele fizesse aquilo. Dizia que não era higiênico, essas coisas. Agora a gente tem que morrer de fome pra não correr o risco de ficar doente? Tinha dia que ele trazia um requeijão que tinha vencido fazia pouco tempo e que iam jogar fora. Dia de Requeijão era uma alegria. A Maninha adorava. Tão bonitinha era a Maninha. Mesmo magrinha e frágil que nem um pardal, ainda mantinha as bochechas do tempo de nenê. E aquele sorriso cheio de esperança inocente. Saudades daquele sorriso.

A Mãe e o Chicão viviam brigando. Lembro-me de quase todo santo dia ver Chicão berrando e esperneando, enquanto a Mãe só ficava parada, os braços cruzados, falando pouco, mas com a firmeza de um pilão. A briga sempre terminava com Chicão saindo pra gastar o resto dos trocados com cachaça. Tinha que implorar, se desculpar, se humilhar pra voltar. A Mãe nem sempre perdoava. Chicão já teve que dormir no relento mais de um par de vezes. De manhã ela o acordava com um copo de café e muito silêncio. No final faziam as pazes antes mesmo dele sair pro trabalho. De noite começava tudo de novo.

Um dia a briga foi feia e ele não voltou. Na primeira noite ela não disse nada. Só mandou a Maninha calar a boca quando começou a reclamar de fome. Comemos um resto de pão seco e fomos dormir. Na segunda noite não tinha nem resto de pão, nem nada pra comer. Fomos dormir bem cedo pra tentar esquecer a fome. No meio da noite a Maninha começou a ter uma tremedeira na cama. A Mãe olhou pra ela, botou a mão na testa e falou pra eu cuidar dela que ela ia arrumar leite com alguém, que a Maninha estava muito fraca e que eu não devia deixar ela dormir de jeito nenhum. Foi difícil. Tive que dar uns tapinhas e uns beliscões nela pra conseguir. Ela não tinha força nem pra chorar. A Mãe apareceu com meio copo de leite e deu pra ela. A tremedeira diminuiu, mas ela continuava pálida. Velamos por ela a noite toda. Logo de manhã a Mãe me pediu pra ir até a venda e trazer alguma coisa pra ela comer. Qualquer coisa. Faz fiado, mendiga. Mas traz comida pra essa menina. E eu fui. Entrei na venda, peguei pão, queijo, presunto e leite. Coloquei no balcão e pedi pro Portuga fazer fiado, que o Chicão depois pagava. Ele disse que a conta do Chicão estava grande demais e que não ia fazer fiado coisa nenhuma enquanto ele não pagasse pelo menos uma parte. Pedi por favor, contei que minha irmã estava morrendo de fome, mas ele não cedeu. Até me enxotou pra fora da venda. 

Fiquei desesperado. Não tinha mais ninguém pra recorrer. Comecei a implorar por uns trocados pra quem passava na rua, mas a maioria ou me ignorava ou pedia desculpas com uma cara de piedade falsa. Você sabe como, não sabe? É, a gente também sabe. Aquilo foi subindo meu sangue, me dando uma raiva. Eu não estava pedindo muito. Só queria uns trocados pra comprar comida pra minha irmã não morrer de fome. Mais nada. Mas ninguém tinha nada. Estavam todos atrasados. Não era irmã deles. Um menino forte como você não devia estar mendigando. Devia estar na escola ou trabalhando. Eu estava na escola. A Mãe nunca me deixava faltar. Não estava lá naquele dia porque era uma emergência. Não quero sua piedade. Não quero lição de moral. Quero sua ajuda, pelo amor de Deus!

Daí eu vi entrar na venda uma menininha de uns nove ou dez anos. Um pouco mais velha que minha irmã. Entrou sozinha e saiu logo depois com um saco de compras. Fui atrás dela, na esperança de que uma criança ainda tivesse um coração caridoso. Ou que fosse mais fácil de roubar. Esperei ela chegar numa rua mais vazia e parei na sua frente. Ela se assustou e nem me ouviu. Agarrou o saco de compras e começou a gritar. Tentei arrancar o saco de compras e sair correndo, mas ela estava tão agarrada que não consegui de primeira. Ela continuou gritando. Dei um tapa na cara dela e mandei calar a boca. Só piorou. Ela começou a chorar e a espernear. Tentei tapar a boca dela com a mão, mas ela me mordeu. Tive que bater forte na cara dela pra ela soltar. Ela soltou e caiu no chão, toda torta. Bateu a cabeça e apagou. Lembro que começou a sangrar na calçada. Fiquei um segundo indeciso se a ajudava ou se pegava as compras que tinham se espalhado no chão, quando ouvi alguém gritar. Saí correndo. Fugi mesmo. O que mais eu podia fazer? Quando eu vi tinha dois guardinhas me perseguindo. Levei um tempo pra despistá-los, e tive que ficar escondido enquanto me procuravam. Só consegui voltar pra casa era mais de meio dia. 

Cheguei e a Mãe não estava lá. Fui até o quarto e encontrei minha irmã esparramada de cara no chão. Corri até ela e deitei-a no meu colo. Ela mal respirava, mas quando conseguiu foi só pra sussurrar uma palavra: “Fome”. Foi a última palavra que ela disse. Tentei não deixá-la dormir, sacudi, bati em suas bochechas, berrei. Não adiantou. Quando a Mãe chegou, eu ainda estava chorando com ela no colo. Ela esfregou minha cabeça e pegou o corpinho de mim. Ajeitou seu cabelo e ninou a filha como se ela estivesse dormindo. Cantou pra ela. Por um instante acreditei que aquela canção iria trazer minha irmã de volta à vida. Juro que acreditei. Mas não funcionou. Não funcionou.

Maninha morreu.


A Mãe aguentou firme a provação de enterrar a caçula. No final perdoou Chicão, afinal ele também tinha perdido a filha. Ao invés de afastar, a dor os uniu mais ainda. Passado o luto, Chicão parou de beber e se endireitou. Entrou para uma igreja e renasceu em Cristo. Arrumou um emprego melhor. Botava dinheiro em casa e sempre trazia comida. Pouca coisa, mas já dava pra sobreviver. Ele e a Mãe quase não brigavam mais. Entre eles, porque comigo brigavam o tempo todo. Por causa de minhas notas na maioria das vezes, mas muitas vezes por qualquer motivo besta. Chicão vivia me chamando de “desocupado”, “inútil”, dizia que já que eu não ia me esforçar nos estudos, então eu tinha que sair da escola, arrumar um emprego, botar comida em casa. Mas a Mãe não ia permitir isso. Queria um futuro melhor para o filho. Pra que eu não passasse pelo que ela passou. Ela me dizia isso pra cada nota vermelha que eu tirava. E eu a amava por isso. Mas ao mesmo tempo eu concordava com o Chicão. É legal pensar no futuro, mas e se a fome chegasse antes do futuro? Ela já tinha feito uma vítima na família. Eu precisava ajudar. Já tinha idade. Depois eu voltava para a escola. Quando eu pudesse parar de pensar só no presente.

Eu tinha recém completado dezesseis anos quando veio a bomba: a Mãe estava grávida. Chicão comemorou como se fosse final de campeonato. Gritou aleluias pro céu e agradeceu sua bíblia surrada às lágrimas. A Mãe parecia feliz, mas era aquela felicidade culpada, como se fosse uma ofensa a Deus não ficar feliz com o nascimento de uma criança. Eu sabia o que ela estava pensando. Era mais uma boca. Mais uma despesa que teriam que arcar. Chicão estava melhor, mas não o suficiente pra sustentar de novo três pessoas. Ela já tinha perdido uma filha. Pela primeira vez vi a Mãe fraquejar. Foi só um instante, mas havia uma rachadura. Uma falha que poderia ruir toda sua fortaleza meticulosamente construída. Eu vi, e sei que ela viu que eu vi. Tanto que a primeira coisa que ela me disse quando fui cumprimenta-la foi para que eu não saísse da escola. Me fez prometer. E eu prometi.

Naquela noite o Chicão veio falar comigo. Falou um monte de abobrinha sobre Jesus e Deus, e umas coisas de desígnios divinos e de redenção. Disse que até já tinha conseguido arrumar um emprego pra mim junto com o pessoal da igreja, mas que a Mãe não tinha permitido. E nunca iria permitir. Não enquanto eu não me formasse. Ouvi sem retrucar, pois eu sabia que ali vinha bomba. E não deu outra. O desgraçado encontrou um jeito de botar em mim a culpa pela morte de minha irmã, e que ele não ia permitir que acontecesse a mesma coisa com seu próximo filho. Disse que naquela casa a partir de agora só teria comida para eles e para o bebê. Que o melhor pra todo mundo seria que eu fosse embora e me arrumasse sozinho. Disse que até pagava a passagem, desde que eu não dissesse nada pra Mãe.

Eu sabia que ele tinha razão. Não dava mais pra adiar. Depois que todo mundo foi dormir eu juntei minhas coisas, peguei o dinheiro que o Chicão me deixou e parti pra capital. Deixei uma carta pra Mãe, mesmo sabendo que aquilo não me redimiria. Prometi que um dia eu voltaria com um canudo debaixo do braço e dinheiro no bolso. Que ia ajudar ela a sair daquela situação. 

Mas eu sabia que era tudo mentira. 

Porque eu descobri da pior maneira que na cidade a vida pode ser muito pior. Muito mais perversa. Não interessa o quanto você queira, o quanto você reze, o quanto se esforce. Cada degrau que você sobe, escorrega outros dois. Aqui não dá pra subir sem ajuda. Sem uma mão amiga que, mesmo não conseguindo me puxar pra fora do poço, me ajude a evitar que eu caia no fundo dele. Pra escuridão da fome. Para um túmulo de promessas vazias e orgulhos dilacerados. 

Eu só queria poder voltar pra casa. 

Tem um trocado?

--
O texto acima é um estudo para um personagem que precisei construir como parte do Curso de Teatro que estou fazendo no Espaço Recriarte.