14 novembro 2006

Antropofagias

"O instinto venceu a razão: há um chacal adormecido em cada homem".
Charles Darwin, sobre os crimes da Rua do Arvoredo.


Tim Burton já tem seu próximo projeto em andamento. Se chamará Sweeney Todd, e será um musical que contará a bizarra história de Benjamin Barker e sua ajudante, a Sra. Lovett, que na Londres de meados do século XIX consumaram um plano de vingança diabólico: atraíam seus algozes para a barbearia do protagonista (papel do queridinho do diretor, Johnny Depp), onde os degolava e, com a ajuda da Sra. Lovett (papel da esposa do diretor e igualmente habituée Helena Bonham Carter) preparavam com a carne de suas vítimas deliciosas tortas que fizeram sucesso em toda a cidade.

A história é baseada em uma peça da Brodway homônima, e tem tudo para ser mais um dos filmes com a "cara" de Tim Burton. Mas o que mais espanta não é a história em si, mas saber que a sinistra trama pode ter sido baseada em fatos reais, e, pasmem, ocorridos no Brasil. Mais especificamente entre 1863 e 64, na Rua do Arvoredo, em Porto Alegre.

A história é muito semelhante: José Ramos, bon vivant e educado, egresso de Santa Catarina (de onde fugiu após ter supostamente assassinado o próprio pai), e sua companheira, Catarina Pulse, viúva húngara nascida na Transilvânia (tinha que ser...) seduziram e assassinaram dezenas de homens nas mal iluminadas ruas da Porto Alegre do Segundo Império, e para desaparecer com as provas dos crimes preparavam lingüiças com a carne cuidadosamente destrinchada dos cadáveres de suas vítimas. Lingüiça esta que era vendida no próprio açougue de José Ramos na Rua do Arvoredo, e que eram um sucesso na cidade inteira. Dizem que até mesmo D. Pedro II as provou e elogiou. Descoberto o crime, José Ramos foi condenado à forca e Catarina Pulse foi internada em um sanatório, onde morreu anos depois.

A história do casal que transformou grande parte dos habitantes da cidade em canibais foi tratada como lenda urbana por muito tempo, tendo sido abafada na época de sua descoberta (apesar de ter sido noticiada em jornais da França e Uruguai, além de ter inspirado a citação de Charles Darwin no início deste pôste). Um dos poucos livros que tratam do assunto foi escrito pelo falecido historiador Décio Freitas, intitulado O Maior Crime da Terra (Ed. Sulina, 1996). Outro, lançado recentemente é Canibais — Paixão e Morte na Rua do Arvoredo (LP&M Editores, 2004), de David Coimbra, que se utiliza de diversas licenças poéticas e mistura fatos e ficção num folhetim que fará torcer o nariz de muita gente que procura por mais a respeito dos verdadeiros fatos ocorridos nas ruas e becos mal iluminados de Porto Alegre, apesar do livro ter sido escrito em conjunto com o próprio Décio Freitas. Lido sem espectativas ou como entretenimento é bastante válido, mas para uma análise mais acurada do evento o livro de Décio Freitas é bem mais fiel aos fatos (principalmente por conta do final, completamente fictício no livro de David Coimbra).

Acho difícil que Tim Burton credite esta história em sua versão musicada para os cinemas, o que é uma pena. Duvido até mesmo que ele realmente saiba da suposta origem da história que está filmando. Mas fica aqui o registro, uma justiça histórica quixotesca de minha parte, nem que seja apenas para gerar comentários após a exibição do filme, num boteco, junto com cerveja e uma irônica porção de calabresa fatiada.

Nenhum comentário: