04 maio 2015

O Interrogatório Interior


Por favor, sente-se. Fique à vontade. Quer uma água, um café, um refrigerante?  Um bourbon duplo com soda?

- Não, eu... Cara, onde eu estou? Quem é você?

Eu faço as perguntas, se você não se importar. Quem eu sou e onde estamos não é relevante. Não estamos aqui para falar de mim, mas de você. Estamos aqui para nos conhecer um pouco melhor. Quer dizer, pra eu conhecê-lo um pouco melhor. Muito melhor. Na verdade estamos aqui para conhecê-lo a fundo.

- Eu estou sendo acusado de alguma coisa?

Está? Não sei, você me diz. Você já cometeu algum crime? Algo que tenha se arrependido?

- Eu quero um advogado.

Sem advogados. Sem intermediários. Somos apenas eu e você aqui, e é assim que vai ser. Vou te fazer uma série de perguntas e você vai respondê-las com toda a sinceridade. Como se sua vida dependesse disso. Porque ela depende, pode acreditar.

- O que você quer saber?

Quero saber tudo. Cada detalhe sórdido, cada trauma, mesmo que pareça irrelevante. Cada mania, cada trejeito, cada história que você testemunhou ou vivenciou.

- E por que eu faria isso?

Porque você não tem escolha. Porque você ainda não existe. Só existirá depois que responder às minhas perguntas. Até lá você será apenas um esboço, um conceito abstrato. Serão suas respostas que irão justificar sua existência, e irão determinar como será sua vida a partir de então. Desse modo, sugiro que você sente, relaxe e me conte tudo o que eu quero saber, tudo o que eu preciso saber. Caso contrário você retornará ao limbo amorfo da não-existência. Ou pior.

- E se eu me recusar?

Você não pode. Você não quer recusar. Estou lhe dando a oportunidade de se tornar algo. A alternativa é óbvia. Eu poderia te hipnotizar, injetar um pouco de soro da verdade, lançar um feitiço, te enrolar no laço da Mulher Maravilha, tanto faz. O que você preferir. O que for necessário. Mas você só sai daqui depois de responder minhas perguntas. Todas elas.

- Quem é você?

Eu sou quem irá contar sua história, que irá transformá-la em realidade. Eu irei pegar tudo o que você me der e misturar, bater, moer e destrinchar até virar polpa. Eu depois irei dar um sentido à essa polpa, e, por consequência, à sua existência.

- E eu serei o herói dessa história?

Pode ser. Pode não ser. Depende. A única coisa que posso garantir é que você será o protagonista de sua própria história.

- Somos todos protagonistas de nossas próprias histórias.

Agora você está me entendendo. Podemos começar?



E é assim que deve iniciar a sabatina com todos os seus personagens principais. Um bom personagem, seja ele protagonista, antagonista ou coadjuvante, deve gerar empatia no leitor. E para que isso aconteça é preciso haver algum tipo de identificação, algo que justifique seus atos, suas decisões, sua existência. E para que isso ocorra é preciso começar a tratá-los como seres vivos. Conversar com eles. Colocar-se em seus lugares, compreendê-los da maneira mais completa possível.

A técnica do "interrogatório" é eficaz pois coloca o personagem em uma situação vulnerável, onde ele deverá se abrir ao escritor sem nenhuma ressalva. Ele deverá contar tudo, desde eventos históricos, passando por ideologias e visões do mundo, chegando até a traumas e segredos que ele nunca compartilhou com ninguém antes. Serão esses detalhes, a soma deles, que transformará seu personagem de um rabisco mal ajambrado em uma pessoa viva, com objetivos, motivações e obstáculos claros. Que o tornarão verossímil, tridimensional.
Falando em dimensões, nesse processo você deverá passar por todas elas antes de poder considerar seu personagem como criado. Como vimos nos artigo anterior, as três dimensões do bom personagem são:

  • Primeira dimensão: Como ele é visto pelos outros.
  • Segunda dimensão: Como ele se enxerga, graças à sua história de vida.
  • Terceira dimensão: Como ele realmente é, ou como ele age quando está sob pressão.

A primeira dimensão é a mais simples, mas nem por isso deve ser tratada com descaso. Há diversas técnicas para criar a aparência exterior de um personagem. Você pode escolher a que quiser, mas é importante que escolha pelo menos uma. Crie uma ficha de personagem, faça um desenho, uma escultura de argila, tanto faz. Mas faça. Descubra como seu personagem se parece e como ele se mostrará ao mundo que você irá inseri-lo. Visualize-o. Adicione manias, trejeitos, detalhes característicos.

Coloco abaixo uma boa lista para se começar. Sinta-se à vontade para incluir ou excluir o que achar relevante, mas preencha-a:

  • Dados Catalográficos:
    • Apelido (Como o personagem é chamado por outras pessoas), Nome completo, Idade, Nacionalidade/Naturalidade
  • Aparência:
    • Altura, Peso/Tipo físico, Cor da pele, Cor dos cabelos, Cor dos olhos, Tipo de vestuário
  • Características marcantes:
    • Cicatrizes, Deficiências aparentes, Tatuagens, Piercings, etc.
  • Atributos Sociais
    • Profissão, Onde estudou, Renda, Bens, Relacionamento atual, Hobbies/Interesses.

Este é um bom começo, mas ainda é pouco. Um protagonista ou um antagonista é muito mais do que isso. Se você parar aqui terá o que os críticos adoram rotular de "monodimensional", "superficial" ou simplesmente "ruim". Para evitar que isso aconteça, precisamos cobrir a segunda e a terceira dimensões. E é aí que o processo do "interrogatório" brilhará. Relembre a cena lá em cima. Imagine-se com o seu personagem em uma sala vazia. Somente você e ele. Você cheio de perguntas e ele repleto de respostas, e incapaz de mentir ou esconder qualquer coisa. É sua oportunidade de conhecê-lo a fundo, descobrir tudo a seu respeito, tudo o que ele fez ou vivenciou e que o transformou no que ele é hoje, no que ele será no princípio de sua história. Aproveite essa oportunidade. Mergulhe fundo. O mais fundo que conseguir. Não negligencie nenhum detalhe, por mais irrelevante que possa parecer. A solução para um bloqueio pode estar nesse detalhe. Você já tem um Tema, um Conceito e uma Premissa. Use isso a seu favor. Pense em seu personagem nesta história que está sendo gestada, mas permita que ele tenha uma história própria, mesmo que elas sejam interdependentes (e elas são, não se esqueça!).

Tá, e quais as perguntas eu devo fazer, você deve estar se questionando. É ótimo pensar assim. Você está indo a uma entrevista crucial com um personagem importantíssimo da história que irá escrever pelos próximos meses ou anos. Tal qual um bom jornalista, é bom ir preparado. Saber o que perguntar é essencial. Larry Brooks, em seu livro "The Three Dimensions of the Character" lista uma série de perguntas básicas que devem ser feitas sobre o personagem, que traduzo abaixo (com uma pequena adaptação para fazer sentido no contexto do interrogatório):
  • Qual é a sua história pregressa, suas experiências que programaram como você pensa, sente e age hoje em dia?
  • Qual é o seu “demônio interior”, e como isso influencia suas decisões e ações frente aos “demônios exteriores” que serão lançado a você?
  • Você tem algum ressentimento?
  • Como você se sente a respeito de si próprio(a), e qual a distância entre este sentimento e a maneira que outras pessoas pensam a seu respeito?
  • Qual é a sua visão do mundo?
  • Qual é a sua bússola moral?
  • Você é benevolente ou ganancioso(a)?
  • De que maneira você adere a gêneros ou estereótipos?
  • Se não adere a nenhum, de que maneira você se diferencia?
  • Que lições de vida você ainda não aprendeu?
  • Que lições aprendeu, mas as rejeitou ou falhou em aprender?
  • Quem são seus amigos?
  • São intelectualmente similares a você?
  • Qual é o seu QI social?
  • Você é tímido(a)? Ansioso(a)? Descontraído(a)? A Alma da Festa? Introvertido(a)?
  • Qual é o seu desejo mais secreto?
  • Qual sonho de infância nunca se realizou e por que?
  • Qual é o seu sistema de crenças ou religiosidade?
  • Qual é a pior coisa que você já fez?
  • Você tem segredos? Talvez uma vida secreta?
  • O que as pessoas mais próximas a você não sabem a seu respeito?
  • O que o(a) faz postergar uma tarefa, procrastinar?
  • Alguma pessoa ou evento já impediu seu avanço pessoal?
  • Quantas pessoas iriam a seu funeral? Por que alguém decidiria não comparecer?
  • Qual o seu aspecto mais improvável ou contraditório?
  • Quais são suas manias ou hábitos?
  • O que o(a) diferencia do resto das pessoas? Que ponto de sua história pregressa o(a) levou a isso?
  • Você tem alguma cicatriz psicológica que afeta sua vida?
  • Como você age quando está sob pressão?
Nada impede que sejam incluídas outras perguntas, para fins de maior aprofundamento, mas no mínimo essas devem ser respondidas. Escreva as respostas. Não as mantenha no campo das ideias. Faça seu personagem respondê-las. Isso, além de ajudar você a compreender seu personagem, irá auxiliá-lo a encontrar sua voz.

Muito importante: não tenha pressa. Desfrute esse momento de intimidade entre você e o seu personagem. Quanto mais tempo você investir nesse processo, melhor será para sua história. Um personagem bem construído, bem estruturado, irá impelir sua trama. Ele será a carne e os músculos de sua narrativa. E quanto mais você conhecê-lo, menor a chance de ficar bloqueado ou usar a desculpa esfarrapada de que "perdeu o controle do personagem". Isso é uma bobagem. Se você perdeu o controle é porque nunca o teve, pra início de conversa. Reverta essa situação. Você e seus personagens irão passar muito tempo juntos, então é bom que sejam íntimos. Permita-se essa intimidade.

Terminado o processo de criação de cada personagem principal (primários e secundários), é hora de sentar e colocá-los em algum lugar. E é importante que esse lugar seja sólido, resistente o suficiente para suportar eles e a sua trama. É importante que sua história tenha uma estrutura. De nada adiantará jogar personagens bem construídos em uma realidade desconjuntada, sem objetivos ou fronteiras claras. Se os personagens são a carne e os músculos, a estrutura é o esqueleto, o que sustentará sua história. E é disso o que falaremos no próximo artigo.

Até lá.


Este artigo é o quinto de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui. Continuem ligados para ler os próximos. 

27 abril 2015

A Dupla Tríade do Personagem Único

"Quando escreve um livro um escritor deve criar pessoas vivas; pessoas, não personagens. Um personagem é uma caricatura." - Ernest Hemingway
O que é mais importante em uma história, a trama ou seus personagens?

Essa é uma questão que gera discussões acaloradas dentro dos chamados "círculos literários". Defensores da "alta literatura" (seja lá o que isso signifique) defendem que os personagens são o elemento mais importante de uma obra. Já os partidários da "literatura de gênero" (seja lá o que isso signifique) advogam justamente o contrário.

E qual deles está certo? Não sei. Não me importa. A única coisa certa aqui é que não há consenso. Sendo assim você, como escritor(a), deve decidir qual dos elementos dará mais importância por conta própria.

Mas, caso esteja disposto a aceitar uma sugestão (e, se você chegou até aqui, acredito que esteja) você não deveria entrar nessa disputa. Para o bem de sua história.
Explico: Ambos os elementos - personagens e trama - devem ter o mesmo grau de importância. Tender para qualquer lado irá apenas desbalancear sua história. A importância de uma obra é medida por sua perenidade, ou seja, pelo que permanecerá com o leitor após o término de sua leitura. Uma trama excitante com personagens fracos será tão descartável quanto uma trama frouxa e incoerente permeada de personagens bem construídos. O segredo não está em dar mais valor a um ou outro elemento, mas balancear uma trama bem resolvida com personagens marcantes. Qualquer coisa abaixo disso e sua obra fracassará no desafio do tempo.
Tendo isso em mente, é hora de investir um tempo na criação de seus personagens. Você já tem uma Premissa, construída com o auxílio do Tema e do Conceito (se não tiver, volte três casas). Nessa premissa deve ter sido delineado seu(sua) protagonista. Talvez um antagonista também. É com eles que você deve começar, mas não pode parar apenas neles. É hora de construir o elenco que irá sustentar sua trama, que irá vivenciá-la. Basicamente, há três tipos de personagens:

  • Primários (Protagonistas e Antagonistas): Estes são a essência de sua obra. É através de suas ações, reações e decisões que a trama se centrará. Seus destinos serão o ponto central da história, bem como as consequências de seus atos. Tudo girará em torno deles. Torceremos pelos protagonistas e contra os antagonistas. Eles serão o alvo de nossa empatia. Toda história PRECISA ter um ou mais protagonistas e uma força antagonista (que pode ou não ser uma pessoa). Sem esse embate não há conflito. Sem conflito não há história. 
  • Secundários (Coadjuvantes): Os coadjuvantes não são o centro de sua história, mas ainda assim eles serão essenciais para o andamento da trama. São eles que irão auxiliar e/ou atrapalhar tanto protagonistas quanto antagonistas. Eles darão apoio ou motivação de forma direta ou indireta. Serão confidentes, traidores, vítimas, portos seguros. Orbitarão os protagonistas e antagonistas em diversos momentos, seja auxiliando ou colocando tudo a perder.
  • Terciários (Apoio): São aqueles que surgem apenas em alguns momentos da trama, seja para dar verossimilhança a alguma cena, seja para apenas fazer figuração, mas aparecerão e desaparecerão quando necessário. Poderão ter envolvimento indireto na trama, mas isso não é um pré-requisito.

No processo de planejamento é essencial construir de forma abrangente os personagens primários. É importante também trabalhar bastante nos secundários, mas não precisa chegar ao grau de detalhismo dos primários. Já os terciários podem ser criados on the fly, ou durante a construção da trama. Mas é muito importante ter personagens primários e secundários bem construídos antes de começar a escrever.

Tenho certeza que você já deve ter ouvido sobre a importância de construir "personagens tridimensionais" para a sua obra, de modo a evitar maniqueísmos e superficialidades. Eu concordo, mas o que são personagens tridimensionais? Quais são as três dimensões que definem um bom personagem?
Dica: Não são essas.
Na geometria as três dimensões que definem um objeto são altura, largura e profundidade. Na criação literária as dimensões são dadas apenas pela profundidade que penetramos na psique de nosso personagem. Assim, as três dimensões do personagem são:

  • Primeira dimensão: Como o personagem é visto pelos outros.
  • Segunda dimensão: Como o personagem se enxerga, graças à sua história de vida.
  • Terceira dimensão: Como ele realmente é, ou como ele age quando está sob pressão.

Na primeira dimensão temos o trato mais superficial de sua personalidade. Como ele se veste, qual sua aparência, trejeitos, como ele fala, no que trabalha, etc. É a casca que ele apresenta ao mundo. E sim, é importante definir esses traços, pois será através deles que o personagem irá interagir com outros personagens.

Já na segunda dimensão penetramos mais um pouco. Aqui definimos ideologias, traumas, recordações relevantes, neuras, manias. Debaixo de nossas cascas todos temos um arcabouço de memórias, experiências e eventos que auxiliaram na construção do que somos. Todas as nossas decisões e atitudes podem ser justificadas por estes elementos, então é importante dar a seu personagem um histórico, uma vida pregressa, uma série de eventos que contribuíram em sua formação até o momento que ele entra na sua história.

E a terceira dimensão? Bom, esta é a que realmente o bicho pega. É aqui que um personagem deixa de ser um amontoado de características e memórias, e "cria vida" (por favor, note as aspas). Porque não interessa o quanto tenhamos vivenciado ou nos esforçado para acreditar em determinada coisa, quando o momento crucial chega, quando precisamos tomar uma decisão de vida e de morte, quando estamos no fio da navalha, é aí que mostramos nossas verdadeiras cores. Um pacifista pode causar uma guerra mundial. Um notório covarde pode realizar um ato heroico. Um gênio pode chegar a uma conclusão estúpida, pelo qual todo o Universo sofrerá as consequências.
"Por quê eu não matei Isildur quando tive chance?"
Mas não pense nisso como algo arbitrário. A terceira dimensão é a soma das duas primeiras, mas com uma pitada extra de tempero, algo inesperado até mesmo para o próprio personagem. E é nessa pitada que está a diferença entre um personagem bom e um inesquecível.

Parece complicado? E é, pode acreditar. Ninguém disse que seria fácil, ou que eu daria aqui todas as respostas (até porque não as tenho). Mas no próximo artigo explicarei uma técnica que, mesmo não sendo infalível, irá auxiliá-lo na criação de personagens tridimensionais.

Até lá.


Este artigo é o quinto de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui. Continuem ligados para ler os próximos. 

23 abril 2015

A Promessa da Premissa


Muito bem, já temos um Tema, já elaboramos um Conceito, é hora de escarafunchar um pouco mais, abanar a neblina, assoprar a poeira e ver o que tem de verdade nessa coisa que chamamos de história. É hora de começarmos a nos comprometer com o que realmente será escrito. É hora de estabelecer uma PREMISSA.

E o que é uma premissa? Pode ir no dicionário dar uma olhada se quiser (Aliás, esse é um hábito muito saudável). Já olhou? Entendeu? Legal. No nosso caso específico, a premissa será o fator que irá vender sua história. Sim, isso mesmo.
"Mas eu nem comecei a escrever a história e você já quer vendê-la?". Calma, pequeno gafanhoto. Primeiro, como eu já disse no artigo anterior, você já está escrevendo a história. Segundo, estamos falando mais em termos de gerar atrativos do que de cifras e montantes.

Sua história precisa ser "comprada" por seus leitores. Eles precisam sentir um comichão irresistível para saber como ela se desenvolverá, e como terminará. Ele se interessou pelo tema, foi paquerado pelo conceito. Agora é hora de dar o bote e agarrá-lo. E a arma para isso é a premissa.

Uma premissa precisa se comprometer. Agora é hora de delinear efetivamente QUAL a história será contada. Entrar mais no detalhe, delinear um pouco mais os personagens e tudo aquilo que torna sua história interessante e instigante o suficiente para ser lida.

Tá, mas como fazer isso? Não é fácil. Temos pouca matéria prima em mãos ainda (de novo, apenas Tema e Conceito). Precisamos de mais coisas, de mais ferramentas. Bom, aqui uma lista do que uma boa premissa DEVE conter:

  • Um (ou mais) Protagonista(s): É hora de pensar na figura que impulsionará nossa história, que levará as bordoadas da trama e carregará nossa empatia até o ponto final. Mas não se preocupe com muitos detalhes ainda. Nesta etapa pode se ater à primeira dimensão (explicarei sobre dimensões de personagens no próximo artigo). Use arquétipos. Mas, se puder (e isso puder ser relevante para a trama), adicione um twist: "Um açougueiro vegetariano", "Uma freira com tendências sadomasoquistas", etc.
  • Cenário: Toda história se passa em algum lugar, e em alguma época. Diga onde e quando sua trama se desenrolará, mesmo que ela se passe em diversos lugares e épocas diferentes. Cite todos, se for necessário. "São Paulo, início do século XXI", "China, 250 a.C.", "Tralfamadore, do Big Bang à Entropia".
  • O Primeiro Ponto de Virada: ou, em bom português, Plot Twist. Um ponto de virada é quando a vida pregressa do protagonista vira do avesso e ele precisa agir. É o primeiro impulso da história, algo que a transforma de um simples retrato prosaico em uma trama, em uma sequência de eventos que puxarão seus leitores do primeiro parágrafo até o ponto final.

Só isso. Tudo isso. Se estes elementos forem adicionados, você terá uma premissa. Junte tudo em poucas frases, se possível. Mas não negligencie os detalhes. Aqui, mais do que nunca, o Diabo está nos detalhes. É hora de correr riscos, de elevar a barra. Não tenha medo.

Vou exemplificar. Imaginem a premissa abaixo:
Após a morte de seu marido, uma mulher vasculha seus e-mais e descobre um segredo terrível que virará sua vida de cabeça para baixo.
É uma premissa? É. Tem uma protagonista (a viúva), um cenário básico (é um trama contemporânea) e o primeiro ponto de virada (a descoberta dos e-mails comprometedores).

Agora, é uma boa premissa? Ela te deu vontade de continuar, de descobrir como a história se desenvolverá? Não, pois é genérica demais. Quem era o marido? Qual o segredo? Não precisa entregar todo o ouro, mas algo precisa ser dito, algo que seduza, que atice a curiosidade do leitor.

Vamos tentar de novo:
Após o assassinato de um milionário filantropo, sua viúva, ao ter acesso aos e-mails do marido, descobre que ele talvez esteja envolvido em uma rede de tráfico de escravas sexuais. Para desvendar essa história ela viajará pelos recantos pobres do Brasil até bordéis na Tailândia, numa experiência que colocará em xeque suas convicções conservadoras e sua própria sexualidade.
Pronto, já melhorou. Um milionário filantropo envolvido em tráfico de mulheres? Uma viúva conservadora em uma jornada para a descoberta tardia da própria sexualidade? ESSA é uma história que eu queria ver desenvolvida. Perceba a diferença: na primeira tentativa qualquer história podia se encaixar nela. Era uma premissa fraca, frouxa, descomprometida. Pouco mais que um conceito. Já a segunda instiga uma série de perguntas, que sua história precisará responder. Os personagens ainda estão pouco delineados, mas já há um direcionamento maior. Sabemos QUAL história será contada.

Deu vontade de escrever, não deu? Essa é a função da premissa. É seduzir não apenas um leitor hipotético, mas também o(a) escritor(a). Tema, Conceito e Premissa são ferramentas essenciais no processo criativo. Um Tema leva à um Conceito, que se solidifica em uma Premissa. Vapor, água e gelo. O etéreo começa a tomar forma, mesmo que ainda necessite de uma boa lapidação para se tornar arte.

E qual o próximo passo? Você adivinhou: Construção de Personagens. Mas isso é o assunto do próximo artigo.

Até lá.


Este artigo é o quarto de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui, o segundo aqui e o terceiro aqui. Continuem ligados para ler os próximos. 

15 abril 2015

A Conceituação do Conceito

"Escritores são pessoas desesperadas e quando elas deixam de ser desesperadas elas deixam de ser escritoras." - Bukowski
Talvez lendo os artigos anteriores desta série você tenha se perguntado: E quando é que vamos sentar e escrever? Afinal um escritor é uma pessoa que escreve, não é mesmo? Por que perder tanto tempo com detalhes que poderão mudar a qualquer momento, que me impedem de despejar no papel todas as histórias que estão fervilhando em minha cabeça? Histórias têm personagens, tramas e reviravoltas. Todo o resto aparecerá durante a realização. No máximo durante a revisão. Por quê não estamos escrevendo então? Por quê? POR QUÊ?!
Então deixa eu te contar uma coisa: Você já está escrevendo sua história. A diferença é que aqui você está deixando de lado toda essa coisa de tentativa-e-erro (e correção e revisão, e re-revisão, e etecéteras e tais) e está preparando o terreno antes de efetivamente sentar e escrever. É o que difere um escritor intuitivo de um planejador (como vimos no primeiro artigo dessa série). É a diferença entre simplesmente escrever e criar uma história envolvente, coerente e publicável.

Aqui cabe uma analogia. Imagine um pintor de quadros. Ele tem uma ideia para uma pintura, fruto de uma inspiração, ou encomenda, ou mesmo do tédio, tanto faz. Antes de sair despejando suas tintas na tela, ele fez estudos, esboços, rascunhos. Experimenta técnicas, se sentir que precisa. Faz todo um planejamento prévio já que terá pouca ou nenhuma chance de corrigir a obra depois que a tinta secar. Só quando está seguro do que pretende fazer, de como vai fazer,  é que ele monta o cavalete, separa suas tintas, escolhe os pincéis, limpa o godê e veste a boina.

Qualquer atividade é assim, sejam elas mais ou menos artísticas. Há a intenção, o planejamento e a realização. Cada qual em sua devida ordem, ou a chance de que o resultado saia satisfatório caem drasticamente. Um cirurgião que não planeja a operação nos seus mínimos detalhes corre o sério risco de perder o paciente. O engenheiro que só sai empilhando tijolos é, no mínimo, irresponsável. Toda atividade necessita de três coisas: conhecimento, planejamento e ferramentas.

Por quê com a literatura seria diferente?

No artigo anterior eu expliquei a primeira dessas ferramentas: o Tema. Ele será o norte que sua bússola apontará, que dará direção à sua história. Mas um tema não é o suficiente para que você comece a escrever. Não ainda. Um tema é apenas uma ideia, uma fagulha inicial. É preciso expandir o tema. Ampliá-lo. É preciso estabelecer um CONCEITO para a sua história.
E o que é o conceito de uma história? Um conceito é um pouco mais do que um tema, e um pouco menos do que uma premissa (veremos sobre premissas no próximo artigo). Um bom conceito estabelece as fronteiras do tema e planta a semente da história. É aquele que já começa a traçar as linhas gerais, mas sem se aprofundar na trama ou nos personagens ainda. É o desenho com grafite duro na folha de rascunho, voltando à analogia do pintor.

É quando você se faz uma pergunta do tipo "E se...?", descrevendo um cenário hipotético qualquer. E essa pergunta desencadeia uma série de perguntas semelhantes. E é dessas perguntas, dessa ânsia em respondê-las, que surgirá a história.

Deixe-me exemplificar. Abaixo listo alguns conceitos de histórias já escritas. Tenho certeza que você será capaz de reconhecê-las:
  • E se um rapaz fosse picado por uma aranha radioativa que desse a ele as habilidades de um aracnídeo?
  • E se o mundo estivesse dominado por máquinas que transformaram os humanos em baterias, e a realidade nada mais fosse que uma elaborada simulação implantada em nossos cérebros?
  • E se, em um mundo fantástico habitado por cavaleiros e dragões, um rei morresse e deixasse o trono para seu filho, sem saber que na verdade o garoto é fruto de um incesto de sua esposa com seu cunhado, culminando em uma guerra pela sucessão?
  • E se um casal de adolescentes apaixonados, vindos de famílias rivais, forjasse um pacto de suicídio que os levaria realmente à morte?
Deu pra entender, não deu? Perceba que os personagens, mesmo que em alguns casos tenham sido referenciados, na verdade não foram realmente construídos. São apenas esboços. O que interessa aqui não é quem irá ter sua história narrada, mas O QUÊ será contado, de onde partirá a história. Todo o resto, as tramas, subtramas, reviravoltas e conclusões germinarão deste primeiro conceito.
É importante destacar que, diferente de um tema, que permite a inclusão de diversos subtemas ao tema central, um bom conceito não tem essa flexibilidade. Uma história com diversos conceitos na verdade não tem nenhum. Estabeleça um conceito, expanda-o o quanto for necessário, mas mantenha o foco, ou sua história ficará desgovernada e sem sentido. 

Outra coisa: Seu conceito não precisa ser diretamente relacionado a seu tema, mas deve, de alguma forma, remeter a ele. Isso é essencial, ou então de nada valerá esse esforço inicial. Lembre-se: sua história existe para que você trate do tema escolhido, e o conceito é a uma de suas ferramenta para este fim.

Faça você este exercício. Tente extrair o conceito de alguma história que você já tenha lido ou de algum filme que tenha assistido. Lembre-se: não é hora de colocar personagens nem trama. Apenas fazer perguntas hipotéticas a respeito da história.

Depois faça isso com aquela história que você está matutando há tempos, aquela que você quer escrever.

Mas não faça isso apenas em sua mente. Sente e escreva. Abra um bloco de notas e coloque em palavras. Trace o primeiro esboço. Faça as perguntas certas. Algumas apenas, que deixarão você (e, se tudo der certo, seu leitor) intrigado a respondê-las. Coloque o máximo de drama possível, o máximo de tensão que puder colocar em um conceito hipotético. É a hora de pirar o cabeção. Cadê aquele uísque?

Algumas dicas:

  • Conceito não é sinopse! Esse é um erro comum. O conceito não é sobre o personagem, é sobre a história onde os personagens estarão circunscritos. É um questionamento que o fará pensar no que você faria naquela situação. Fique tranquilo que você escreverá a sinopse em breve.
  • Tenha culhões. Evite conceitos genéricos e sem brilho. "Garoto sai de casa e vive grandes aventuras" não é um conceito. "E se um garoto fugisse de casa para escapar de um pai abusivo e entrasse em uma gangue de viajantes do tempo?" é muito mais instigante, por exemplo.
  • Adicione Drama e Conflito. Sei que é difícil, em linhas conceituais, explorar o drama e o conflito, mas dentro dos limites estabelecidos é possível sim já prenunciar o que virá. Sua história precisará de drama e conflito para funcionar. É hora de dar uma pista sobre quais dramas e conflitos surgirão. "E se uma prisioneira de um campo de concentração nazista fosse obrigada por seus captores a escolher qual de seus dois filhos irá sobreviver?". Alguém tem dúvida que há drama e conflito nesse conceito?
  • Não exagere. Temos a tendência de expandir tudo o que sentamos para escrever. Se sua história está implorando para ser escrita (e lida), isso significa que está no caminho certo. Mas vamos por partes. Expanda seu conceito até o ponto que perceber que está começando a contar a história. E então pare. Você escreverá essa história depois. Conceito é uma coisa, história é outra. Devagar com o andor.
  • Seduza. Seu conceito precisa ser instigante, convidativo, interessante o suficiente para que um leitor separe um tempo livre para se dedicar à sua história. Olhe nos olhos deste leitor hipotético. Ofereça uma bebida e uma promessa de horas e horas de entretenimento recompensador. E seja seduzido também. Criar é se comprometer. Comprometa-se.
Como exemplo coloco o teaser trailer de Tomorrowland, o novo filme de Brad Bird (Os Incríveis, Gigante de Ferro), ainda não lançado, que mostra de maneira magistral o que é um conceito. Aliás, este trailer é um conceito em sua forma mais pura. Temos vislumbres dos personagens e da premissa, mas nada além disso. Ele levanta uma questão hipotética instigante, e termina com uma simples pergunta: "Gostaria de ir?"

Eu sei que gostaria. E que vou.


Este artigo é o terceiro de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui e o segundo aqui. Continuem ligados para ler os próximos.

08 abril 2015

Não Tema o Tema

Ok, então você decidiu escrever um livro, fazer parte da elite intelectual, tornar-se imortal através de suas palavras e ideias, participar de saraus, encontros literários, noites de autógrafos, passar fome, viver na miséria e morrer como um indigente tuberculoso... Não, péra, me perdi aqui. Você quer ser um(a) Escritor(a). Com E maiúsculo. É isso.

Legal. Muito bom. O primeiro passo foi dado. É essencial ter um objetivo, uma meta. Não permita que ninguém o(a) desanime ou o tire de seu caminho. Estufa o peito e cospe o chiclete. Estala o pescoço e os dedos.

Mas antes de sentar e marretar o teclado, quero te fazer uma pergunta:

Por quê escrever um livro?


Não me olha assim. É uma pergunta honesta. Não precisa responder agora. Calma. Deixe-a marinar um pouco em sua cabeça. Caminha um pouco comigo. Cadê aquele uísque?

Escrever um livro é uma trabalheira desgraçada. Você vai perder horas, dias, meses, anos. Vai abdicar de grande parte de seu tempo livre no processo. Vai se frustrar, se desesperar, sofrer física e emocionalmente. Vai brigar com familiares, chefes e bichos de estimação por cada minuto livre. Vai ter uma ideia genial quando estiver longe do computador, apenas para esquecê-la quando conseguir garimpar um tempo para escrever. E no final de tudo ainda terá que revisar, reescrever, cortar, mudar, corrigir. Isso sem garantia nenhuma de publicação. E, mesmo se conseguir publicar, sem nenhuma garantia de sucesso. As chances de seu livro não passar da primeira edição e desaparecer nos catálogos é muito maior que o contrário. E nem me faça falar sobre o rendimento financeiro.
Desistiu? Não? Bom. Muito bom. Isso é um bom sinal. Isso te ajuda a responder a pergunta lá em cima. Você quer escrever um livro pois você não consegue não escrever esse livro, contar essa história. Mesmo com as perspectivas mais sombrias e recompensas limitadas. Você quer escrever um livro porque você precisa escrevê-lo.

Esse é o espírito. Vamos em frente. Próxima pergunta:

Sobre o quê escrever?


Parece bem básico, não é? Se você quer escrever, quer escrever sobre algo. Isso não é apenas importante, é essencial. Você não escreve para se tornar um escritor, você se torna um escritor escrevendo. E escrevendo sobre algo.

Mas é nesse ponto que a maioria dos escritores trava. Sobre o que é o seu livro? Do que ele trata? Em suma, qual é o TEMA de seu livro?

"Ah, é um livro de vampiros", alguém responde. 

Errado. Esse não é o tema. 

"É uma ficção científica hard passada em um planeta distante e...", diz outro, na fileira da frente.

Nope. Também não é o tema, é o gênero. Mais básico que isso. Mais simples. 

"É a história de uma menina que..." - deixe-me interrompê-lo. Também não é o tema, é o começo de uma sinopse. Pense na pedra fundamental de sua história, sobre a qual toda a trama e os personagens vão ser construídos. 

"É uma história de amor, pombas!".

Pronto. 

É isso.

Esse é o tema.
É isso mesmo. Não interessa se sua história tem vampiros chorões,  alienígenas purulentos, ou se passe em um mundo paralelo onde o chocolate é um veneno mortal (NÃÃÃÃOOO!!). Esses são os cenários, os personagens e as alegorias que você vai utilizar. Suas ferramentas de trabalho. Os meios para um fim. 

E o fim é o tema. 

Toda boa história tem um tema central, algum assunto específico sobre o qual o autor quer tratar, e sobre o qual o autor quer levantar questionamentos. "Matadouro 5", de Kurt Vonnegut, não é sobre um cara que viaja no próprio tempo, é sobre os horrores da guerra. "O Senhor dos Anéis" não é sobre hobbits tentando destruir um anel, é sobre a morte da mitologia. "Drácula" é uma história de amor. "Frankenstein" é sobre os limites éticos da ciência. "Hamlet" é sobre vingança.

Eu poderia continuar, mas acho que você entendeu.

De acordo com Milan Kundera em seu "A Arte do Romance" (1986, Companhia de Bolso), um tema é "uma interrogação existencial". É algo que mira para além da superfície, que lida com temas profundos da existência humana. E é sobre isso que sua história tem que falar. Escolha um tema antes de escolher seus monstros. Vasculhe seus sentimentos, desencave seus medos e aflições. Descubra sobre o quê quer escrever antes de começar a escrever. Isso lhe dará um norte, um objetivo a almejar com sua história. Uma boa história começa com um bom tema.

E onde encontrar um bom tema? Bom, aí é com você. O importante é que este seja um tema que você considere importante, algo que você é apaixonado(a), que te incomode, que sacuda suas crenças e convicções, que traga uma mensagem que você quer passar e um questionamento que você quer plantar na mente de seu leitor. 

Apenas tome cuidado para não ser óbvio ou cair no didatismo, ou em um moralismo panfletário. O tema deve permear a trama, mas nunca se fazer claramente presente. Ele deve estar implícito. Lembre-se da analogia da pedra fundamental, aquela que sustenta toda a estrutura mas que nunca é vista. O tema é o norte, mas nem toda jornada precisa ser até o Pólo Norte. Aliás, quase nenhuma é.

Também nada impede que a história tenha vários temas, mas é importante que ela tenha um tema CENTRAL, mesmo que cercado de subtemas. É sobre este tema que estamos falando aqui. A espinha dorsal de sua história. Todo o resto é acessório. Antes de pensar em como vai contar a história é importante definir sobre o quê será a história. Dê esse passo. Comprometa-se a ele. Você vai ver que, quando se sabe onde deve ir, o caminho se torna muito mais claro.

Depois de escolher o tema, é hora de traçar o conceito de sua história, ou o caminho até ele. Mas isso é o tema (viu o que eu fiz aqui?) do próximo texto.


Este artigo é o segundo de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui. Continuem ligados para ler os próximos.


01 abril 2015

O Discurso do Método (ou Pantsers vs. Plotters)


Visualize por um instante a figura romântica do “Escritor”. Aquela figura mítica, culta e inteligente, um tanto excêntrica, cercada de livros, papéis, anotações e copos de uísque. O cigarro pende no canto da boca enquanto o cérebro flana no meio das nuvens, desbravando a névoa do imaginário e pescando histórias no éter do inconsciente coletivo, munido apenas de sua criatividade natural, sendo carregado nos ombros de suas musas inspiradoras. O escritor de vocação, o gênio inato das palavras e sentenças, cujos dedos enfeitiçados tamborilam incansáveis o teclado de uma velha máquina de escrever, produzindo sempre obras-primas imortais. Tudo o que ele precisa é de um gole de uísque, tempo e um estoque infinito de papel.

Imaginou? Você queria ser ele, não queria? Confessa.

Bom, hora do choque de realidade:

Esse escritor não existe.
Ponto, parágrafo, outra linha e travessão.

Calma. Toma uma água. Ou um gole de uísque. Não, não tome o veneno que está em cima do piano ainda. Respira. Fica comigo. Não é porque não existe esse arquétipo do Escritor Divino que você precisa desistir da carreira. Talvez, mas não por esse motivo. Realidade é bom. Realidade põe os pés no chão e os dedos no teclado. Suas histórias precisam voar. Você não. Pega minha mão e caminha comigo um instante. Traz o uísque.

Aquele escritor não existe. Mas quais existem? Há muitas tentativas de catalogar os diferentes tipos de escritores. A mais recente os separa entre pantsers e plotters (ou planners). Uma tradução livre para estes termos seria “intuitivos” versus “planejadores”, no sentido que os primeiros simplesmente sentam e escrevem, tendo em mente apenas um fiapo de conceito e um esboço de protagonista, enquanto os outros planejam toda a história, criam toda a trama, constroem personagens, delineiam capítulos e reviravoltas antes mesmo de escrever a primeira linha. 

Vamos tirar um preconceito do caminho antes de continuarmos: É possível que um escritor “intuitivo”, que senta e escreve sem pensar a respeito, consiga produzir uma obra-prima? Claro. Perfeitamente possível. Aliás, muitos dos grandes gênios da literatura mundial podem ser considerados desta categoria. São os que mais se aproximam da descrição romântica lá do começo do texto. Mas estes são raridades. Se você é um deles, pare de ler esse texto imediatamente e vá escrever. Agora. Não olhe pra trás. Fique tranquilo, estarei na fila de seu lançamento. Mas saiba que te odeio com todas as fibras de meu ser. Dedicatória para seu grande fã, Alexandre, por favor. Morra afogado numa pilha fumegante de estrume, seu desgraçado. Obrigado.

Mas eu não sou um desses. E, muito provavelmente, você também não é. Pense um pouco em sua produção até aqui. Quantas vezes você tirou aquela história da sua cabeça, despejou-a no papel e ela se transformou em uma obra de arte logo na primeira versão?

Nenhuma, né?

Nem eu.
Calma! Fica comigo. Não tem nada de errado nisso. Todos nós começamos como escritores “intuitivos”, cujos primeiros escritos impublicáveis jazem inéditos em sua gaveta e que você não permite nem que sua mãe leia. Aqueles em que você morre de vergonha só de lembrar deles. Textos que você escreveu na empolgação, de uma sentada só, que jorraram sem controle ou plano. Eles são um passo necessário para a evolução, para o aprendizado. Deixa eles lá quietos na gaveta que é o lugar deles. Levanta a cabeça e siga em frente.

Alguns de nós sobem um degrau e começam a pensar durante a criação. A qualidade melhora um pouco, mas mesmo assim quase sempre terminam com um primeiro rascunho deplorável, que precisará de diversas revisões e reescrituras para se tornar minimamente legível, quiçá publicável. Isso quando conseguem terminá-lo. Porque, quando pensamos apenas durante a produção, corremos o risco de travar, de não saber pra onde ir em seguida. Alguns chamam isso de “bloqueio de escritor”. Outros botam a culpa em seus personagens, que subitamente “ganharam vida própria” e saíram do controle. Bobagem. Personagens não criam vida. E mesmo que criem, é você quem deu vida a eles, pode tirar quando quiser. Você é o deus de seus personagens, responsável por suas atitudes e destinos, então não se acovarde. E o tal “bloqueio” nada mais é que uma desculpa, um mito. Você se deixou levar pela maré e ela te jogou numa ilha deserta, sem chance de resgate, onde sua história definhará até morrer de inanição. Acontece. É um risco quando se é um escritor intuitivo.

E existem os planejadores. Os que pensam antes de escrever. Que delineiam toda a história antes de contá-la. Que sabem onde ela vai terminar antes mesmo de darem o primeiro passo. Que perdem dias, meses, escrevendo panos de fundo para cada personagem, mesmo que quase nada daquilo será diretamente usado ou referenciado na história. Que sabem o que vai acontecer em cada capítulo, em cada diálogo. Que efetivamente terminam a história que começaram a escrever.
Eu consigo ouvir seu Artista Interior berrando daqui. “Esse filho da puta quer matar sua criatividade! Fuja, salve-se, proteja sua obra! Ele quer assassinar sua integridade artística!”. Acredite, eu já ouvi esses mesmos berros em minha cabeça várias vezes. E, quer saber? Eles estão errados. Há hora e lugar para tudo. Organizar sua produção não significa suprimir sua criatividade, apenas concentrá-la onde ela é útil e necessária. Lembra-se daquele ditado, que a criação é “um por cento inspiração e noventa e nove por cento transpiração”? É sobre isso que estou falando. Não supervalorize a inspiração. Quem escreve só quando está inspirado não escreve nunca. E raramente termina o que começa. Consegue escrever talvez um conto curto. Uma anedota ou um poema, quem sabe? Mas se seu objetivo é escrever uma história longa, com diversos personagens, tramas, subtramas e reviravoltas, algo que irá consumir meses ou anos de sua vida, não dá pra contar apenas com inspiração, criatividade e espontaneidade. Você vai travar. Você vai abandonar o barco. E, mesmo que consiga terminar, terá em mãos um original impublicável que necessitará de inúmeras revisões e meses de retrabalho, sem nenhuma garantia de sucesso (neste caso, ser publicado). Pode ser que você dê a sorte de conseguir, por pura sorte ou talento inato, que sua obra fique boa de primeira. Mas as chances estão contra você.

Dentre as vantagens de planejar sua obra antes de escrevê-la, posso listar:
  • Sobrepujar o medo de começar: escrever um livro é uma tarefa hercúlea, e a perspectiva opressiva do trabalho ainda abstrato na mente faz com que muitos desistam antes mesmo de começar. Planejando você reduz o monstro desconhecido a um monstro mais familiar e manejável. Não diminui o trabalho, mas tira o medo de encará-lo.
  • Aumentar a agilidade: chega de perder horas e horas olhando a página em branco, sem saber pra onde a história deve ir ou o que fazer a seguir. Um planejamento prévio te dá o caminho das pedras de sua trama. Você sabe, no momento que senta pra escrever, o que irá escrever. Isso te livra das amarras da inspiração (mas não da criatividade). Se bem feito, um livro que levaria anos para ser realizado poderá levar uma fração deste tempo.
  • Reduzir as revisões e reescrituras: quando você terminar sua história, seu primeiro rascunho não será tão ruim (em comparação com a produção intuitiva). Claro, ainda serão necessárias algumas revisões e reescrituras, mas a vantagem é que, com um planejamento, você saberá exatamente onde e o que revisar, reescrever, adicionar ou cortar.
  • Terminar sua história: chega de bloqueios inconvenientes ou personagens rebeldes. Você é o dono da história, você dita a trama. Non dvcor dvco! Finish your shit!

Não estou aqui dizendo para você chutar seu Artista Interior pra fora do escritório e virar um "Operário Padrão" literário. Se você entendeu isso, por favor volte ao início e leia tudo de novo com mais atenção. A Arte precisa estar presente, precisa guiar cada passo. Mas ela não pode ser a única responsável pela sua produção. Você sabe como são os artistas. A Arte é uma soma de Inspiração e Criatividade, mas ela também depende de Esforço e Dedicação para sair do campo das ideias e se tornar algo concreto, compartilhável e apreciável. É preciso terminar sua obra de uma vez por todas. E para que você consiga isso, um pouco de planejamento prévio não fará mal algum. Muito pelo contrário. 

Planejar não significa engessar. Você é o dono de seu trabalho. Se no meio do caminho você perceber que seu planejamento está furado ou que descobriu um caminho melhor, nada impede que você mude todo o planejamento. Há margem para a criatividade, para o improviso, para a inspiração. A diferença é que nem você nem sua obra serão reféns destes elementos. Você sabe onde quer chegar. Se o caminho escolhido não funcionou, tente outro. Mas o destino não muda.

Então, ao invés de ficar aí resmungando sobre uma pretensa integridade artística idílica e romântica, por que você não tenta? Sente-se, planeje, delineie sua história. Depois a escreva de acordo com este plano. Você vai ver como é possível aplicar uma metodologia na criação sem necessariamente retirar o prazer da sua realização, nem a criatividade e a originalidade do produto final. Dê uma chance. Você não vai se arrepender.


Este artigo é o primeiro de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. Acompanhem o blog para ler os próximos.

06 fevereiro 2015

Utopia x Distopia



Mesma cena: pai sentado assistindo TV num domingo a tarde. Chega a filha.

REALIDADE 1:


- Pai, queria te apresentar meu namorado...

- Namorado? E desde quando você namora?

- Pai, esse aqui é o Arlindo. Arlindo, esse é meu pai.

- Arlindo, é? Arlindo de quê? Bom, não interessa. Pelo menos não é uma garota. Você não é uma garota, é?

- Pai!

- Não senhor. Sou homem. Desde que nasci.

- Não dê uma de engraçadinho comigo, rapaz. Não sei quem você pensa que é, mas aquela lá é minha princesa, está me entendendo? Criada nos bons valores morais, vai à missa todo domingo e é virgem como um querubim. E é assim que ela vai permanecer até o dia do casamento, tá compreendido?

- Pai!

- Claro, senhor. Perfeitamente. Minhas intenções com sua filha são as mais...

- E eu lá estou interessado em suas intenções? Suas intenções são as minhas intenções, tá entendido? Se você pensar em mijar fora do balde eu pessoalmente vou garantir que você nunca mais mije de pé, compreendeu?

- Pai!

- Sim, senhor. Claro senhor. Quero assegurar que...

- Quem vai assegurar aqui sou eu. Você parece ser um bom rapaz. Já foi preso, se meteu em alguma encrenca? Onde foi que vocês se conheceram?

- No grupo dominical.

- Você não vai no grupo dominical. Que história é essa?

- É online, pai.

- Tanto faz. Me diga uma coisa, rapaz: em sua casa tem água?

- Três dias por semana, senhor.

- Pra mim é o suficiente. Vocês têm minha bênção. Agora me deixem em paz que vai começar o jogo.

REALIDADE 2


- Oi pai.

- Oi filha. Quem é sua amiga?

- É a Eleanor. E ela é mais que amiga.

- Outra namorada? Foram quantas essa semana? Três? Quatro?

- Pai!

- Estou brincando. Seja bem vinda, Eleanor. Você bebe?

- Um pouco.

- Maravilha. Senta aí que eu já trago uma cerveja e a gente conversa. Vai começar o jogo. Quer uma também, filha?

- Só um copo d'água, pai, por favor.

- Saindo um copo d'água e duas cervejas. No capricho!

20 maio 2014

RESENHA: Sensações - Rafael Bertozzo Duarte

Título: Sensações
Autor: Rafael Bertozzo Duarte
Páginas: 862 toques (Kindle)
Editora: Auto publicação
Ano: Não informado

"Sensações" é uma coletânea de contos de literatura fantástica de autoria do gaúcho Rafael Bertozzo Duarte, editado pelo próprio em formato e-book. Na capa vemos o selo "Oficina de Escritores", que descobri ser um coletivo de autores empenhados no aprimoramento literário através de leituras críticas, e não uma editora.

Os contos não seguem uma temática única, variando de gêneros como ficção científica, feitiçaria e lendas. Variam também na extensão, sendo alguns curtos e rápidos, e outros mais longos.

Em comum, senti a falta de um trabalho editorial mais acurado. Há diversos erros gramaticais e ortográficos, e uma série de problemas que uma revisão mais cuidadosa não deixaria passar, como repetições de nomes e palavras, além de descrições verborrágicas desnecessárias. A editoração não é primorosa, mas não compromete.

Vamos aos contos:

Sensações

Logo após a primeira menstruação, a menina Isabela descobre ser capaz de sentir fisicamente os desejos e intenções sexuais direcionados a ela, o que a faz se distanciar de relacionamentos afetivos por toda a vida.

Partindo de uma premissa interessantíssima, o autor coloca a protagonista em uma série de situações, por vezes divertidas, muitas vezes humilhante. A "condição" de Isabela é uma metáfora curiosa, pois nos coloca como "culpados" de seu sofrimento, e nos faz compadecer das vítimas de assédio sexual, uma situação ainda muito comum em nossa sociedade. O final feliz da história dilui um pouco este impacto, e é corrido e artificial, o que é uma pena, pois a premissa inicial merecia um final melhor.





Epifania Cósmica

Um casal de humanos viaja em uma espaçonave rumo ao centro do Universo, no local onde ocorreu o Big Bang. Lá eles encontram uma civilização alienígena avançada, que os coloca em contato com o Criador do Universo.

Tentando parecer mais profundo do que realmente é, esta noveleta desperdiça uma premissa interessante em uma longa e desnecessária filosofada que não diz nada e não leva a lugar algum. Os personagens principais, o piloto Lurien e a cientista Andrira, são desinteressantes e unidimensionais. Lurien recebe o benefício de encontrar-se com o Criador sem muito mérito, e Andrira frequentemente se perde em longas e maçantes explicações didáticas que não agregam muito à trama, que já é confusa. O conto tropeça em ritmo e extensão, diluindo o impacto da "epifania" antecipada pelo título. E mesmo essa é internalizada pelo protagonista, o que é decepcionante. Dentre todos os contos do livro, este é o que mais se beneficiaria de uma revisão profunda.





Diálogo na fábrica de universos

Dois funcionários em uma "fábrica de universos" conversam a respeito do trabalho escolar do filho de um deles.

Tentando fazer uma anedota existencial, ou exercício de imaginação, este conto se perde em uma troca de amenidades permeadas com detalhes técnicos irrelevantes que, no final, não tem graça, não é imaginativo e nem cumpre a pretensão de trazer uma reflexão sobre a existência de macro-micro-universos.





A morada dos espíritos

O garoto Felipe fica intrigado com um mistério: a impossibilidade de atravessar o rio de seu vilarejo. Após diversas tentativas frustradas, decide construir uma ponte para chegar ao outro lado.

Diferente dos outros textos do livro, esta noveleta cumpre a função de fazer uma reflexão existencialista instigante, ao mesmo tempo em que narra uma história de superação divertida e interessante. Há um ar de lenda, um misticismo implícito que levanta questões fundamentais. O texto tem alguns problemas de ritmo e a tendência de explicar demais. A construção da ponte é inverossímil, mas este é um pecado leve. É o melhor texto do livro.





Procura-se Príncipe Encantado

Anúncio classificado de vaga para príncipe encantado.

Piadinha boba, nem pode ser considerada um conto. No máximo uma postagem no Facebook. Engraçadinha mas descartável.





Apoteose

Releitura do Genesis sob o ponto de vista de Lúcifer, descoberta por uma seita religiosa denominada "Apoteóticos".

Neste conto há uma tentativa de escrever os "Evangelhos segundo Lúcifer", e narrar a sua descoberta por um grupo religioso que acreditava nesta linha de pensamento. Os trechos do "texto" encontrado são interessantes, deturpando as escrituras católicas e incutindo uma nova mensagem que, mesmo não sendo muito original, é revolucionária (e sacrílega) o suficiente para atrair a atenção. Já a aventura dos apoteóticos é enfadonha e sem ritmo, com personagens descartáveis e um conflito desnecessário. Fica a impressão de uma boa ideia desperdiçada em um grande clichê cinematográfico. Uma pena.





Longe de casa

Diálogo entre um humano criado em cativeiro que tenta copular com uma humana capturada, em uma gaiola alienígena.

Uma ideia no mesmo nível de "Diálogo na fábrica de universos", remete aos clássicos mais trash de "Além da Imaginação", mas sem o mesmo charme. O diálogo rápido e desinteressante entre o casal deságua em uma "reviravolta" previsível e tola. O texto se beneficiaria caso o mistério e a construção da expectativa fossem melhor trabalhados, e a interação entre personagens fosse mais divertida, mas do jeito que está é um texto descartável.





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14 maio 2014

RESENHA: A um Passo da Tragédia - Antonio Rocco

Título: A Um Passo da Tragédia
Autor: Antonio Rocco
Páginas: 180
Editora: N.Ex.T
Ano: 2008 (2a. Edição)

"A Um Passo da Tragédia" é uma coletânea de textos teatrais, com uma temática cômica, mas que, como o título indica, estão prestes a escalar para um drama maior. Alguns textos são curtos e diretos, sketches simples. Outros são mais complexos, com mais personagens e jogos de cena que exigirão maiores esforços da trupe que os adaptar.

Antonio Rocco faz um esforço para que seus textos tenham uma reviravolta no final, que tenta dar um sentido diverso ao que acabamos de testemunhar. Em alguns casos é bem sucedido, em outros nem tanto.

Os textos "Por favor, deixe-me tentar novamente", "Ato falho" e "Mera coincidência" compuseram uma trilogia chamada "Os Dez Mandamentos do Jogo dos Sete Erros" (ótimo título) que foram encenadas em 1994 no Teatro Ruth Escobar e em 1995  no Crowne Plaza, ambos em São Paulo.

Por favor, deixe-me tentar novamente

Um sketch rápido, com apenas dois atores (um casal de velhinhos), onde apenas a mulher fala para um marido entretido na leitura de uma revista Playboy. A conversa escala rapidamente para uma DR cheia de mágoa e ressentimento, no limite do desconforto, especialmente dada a ausência de reação do marido. Infelizmente essa premissa interessante é desperdiçada em uma piada tola e fora de contexto no final.

Nota:



Ato falho

Uma mulher volta de uma festa bêbada, e tenta conversar sobre o relacionamento com o marido, que voltou antes por uma crise de ciúmes e aparenta estar dormindo no sofá. 

Outro sketch rápido com um casal como protagonista, mas desta vez há um maior experimentalismo, especialmente na parte do absurdo da situação. A "conversa", de novo monopolizada pela esposa, beira o surreal, com variações de humor bem dosados. O final pontua a cena de maneira chocante, mas coerente.

Nota:






Mera coincidência

Uma mulher encontra o ex-marido no meio da noite em uma rua escura e testemunha seu suicídio. Ou isso é o que ela quer convencer a polícia que aconteceu. 

O autor descreve essa cena como "Drama em um átimo", e não há melhor maneira de defini-la. Uma cena curta, rápida e que deixará confusos aqueles que não prestarem atenção nos detalhes. Mas isso não tira o brilho e a inteligência, em especial no final, que nos faz rever tudo em retrospecto.

Nota:





Ser mãe

Duas mulheres grávidas, amigas do tempo do colégio, se encontram na fila do banco. Uma delas é pudica e recatada, e outra desbocada e sincera. A conversa escancara as diferenças entre as duas amigas e, com isso, a hipocrisia da sociedade. Um texto ferino e interessante, divertido e ao mesmo tempo perturbador, especialmente no final.

Nota:



O Natal mais feliz da minha vida

Na véspera de Natal o dono de um boteco precisa lidar com sua esposa, um bêbado, clientes, uma briga de trânsito, um assalto e sua amante grávida. O texto tem potencial, é interessante desde o começo, e possui personagens marcantes (o bêbado, Birigui, é ótimo). Utilizando o formato "comédia de erros", as situações se sucedem em uma escalada frenética. Uma pena que, mesmo o texto tendo dois finais, nenhum deles seja satisfatório. O primeiro termina a confusão de maneira abrupta e abusando do pastelão. O segundo arrasta a resolução ineficiente (e, por que não dizer, até mesmo repreensível) sem um foco, diluindo o início promissor em lugares-comuns. 

Nota:





Os mais miseráveis

Não li. Além de não ser grande fã de musicais, o texto é inteiro em versos.

Nota:




Muro

Este eu tentei, mas abandonei. Um longo monólogo de 9 páginas, com frases encadeadas sem pontuação, confuso e sem muito nexo. Provavelmente possa ficar interessante se encenado, mas como leitura não deu.

Nota:




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24 abril 2014

RESENHA: “Os Carangonços de Riobaldo”, “O Xenólogo de Sirius” e “Eram @s Deus@s Crononautas” de Antonio Luiz M. C. Costa

Desta vez não será analisada apenas uma obra, mas três noveletas de ficção científica do escritor Antonio Luiz M. C. Costa publicadas exclusivamente em e-book pela Editora Draco.

Estas noveletas têm em comum se passarem em um mesmo universo ficcional, e também por referenciarem livros clássicos de literatura fantástica, seja nos títulos, formatos ou mesmo na temática. Sem mais delongas, vamos a elas.

Autor: Antonio Luiz M. C. Costa
Páginas: 480 posições (Kindle)
Editora: Draco
Ano: 2012

Nesta primeira novela o autor presta homenagem ao clássico brasileiro “Grande Sertão: Veredas”, de Guimarães Rosa, não apenas com referências de nomes dentro da própria história, mas também no formato narrativo. Da mesma maneira que na obra homenageada, aqui temos o testemunho de Tiago, militante da Solidariedade Galáctica alocado no planeta Riobaldo, que orbita a estrela Veredas, para um documentarista do Canal Descobrimento, sobre o primeiro encontro com as criaturas denominadas “carangonços”.

A estrutura narrativa segue o padrão criado por Guimarães Rosa: Tiago fala com um dialeto que mistura um sertanejo mineiro rústico com o de um técnico em expedições planetárias, o que por vezes gera um estranhamento, mas nada que atrapalhe a leitura. Tiago conta sobre o dia em que recebeu a notícia que chegaria a Riobaldo sua antiga namorada da Terra, Isabel, e decide tirar alguns dias de folga para tentar resolver as pendências deste relacionamento. No caminho encontra Aisha, uma amiga com quem tem um caso não definido, e passam a noite juntos. No dia seguinte ambos são convocados para uma missão de resgate de um grupo de biólogos que foram sequestrados por criaturas não catalogadas. Entre os biólogos está a antiga namorada de Tiago, Isabel. No processo de resgate eles descobrem que as criaturas, nomeadas pejorativamente pelo narrador como “carangonços”, possuem inteligência e auto-consciência, além de uma estrutura de sociedade primitiva, o que pode colocar em xeque a colonização do planeta, pois vai de encontro com as normas de terraformação vigentes.

A história é bastante criativa e o universo criado é coeso e interessante. Detalhes técnicos, que vão desde a maneira que os veículos navegam até como as roupas se comportam (!), são explicados de forma didática. A trama, apesar de simples e direta, tem implicações claras, que dariam margem a uma história mais longa. É uma pena que, pela brevidade do texto, personagens como Aisha e Isabel não tenham espaço para crescimento. A história termina de maneira apressada, com uma resolução satisfatória demais para todos os envolvidos, dadas as implicações que a descoberta dos carangonços poderia trazer.

Nota: 




Autor: Antonio Luiz M. C. Costa
Páginas: 1186 posições (Kindle)
Editora: Draco
Ano: 2012

A obra referenciada aqui é “Micrômegas”, de Voltaire, lançada em 1752. Narrado em terceira pessoa, a história acompanha o hermafrodita siriano 4138-383C-463E-A434 (todos os nomes sirianos são cadeias de caracteres hexadecimais), um xenólogo que estuda a evolução da espécie humana na Terra desde o surgimento das primeiras sociedades primitivas. Quando os humanos atingem o estado tecnológico e evolucionário suficiente para que possam ser aceitos dentro da Solidariedade Galáctica, o xenólogo tem a oportunidade de embarcar em uma nave terrígena para aprofundar seus estudos. Durante a viagem ele se envolve com a humana Luli, através de simulações em espaço virtual, onde ambos compartilham sensações e pensamentos íntimos de suas raças.

Neste texto há um cuidado maior na formação dos personagens. A estrutura episódica, com o foco narrativo em Micrômegas (como o siriano foi apelidado pelos humanos, em referência explícita) facilita a compreensão do ponto de vista alienígena com a troca de experiências entre as raças. Da mesma forma, somos capazes de simpatizar com a humana Luli e seus dramas existenciais.

Novamente o ponto alto da história é a criatividade com que o autor cria a biologia alienígena, bem como as estruturas funcionais de uma sociedade avançada, abusando de nanotecnologias e traquitanas inventivas. Um ponto interessantíssimo foi a maneira como os humanos “superaram” a morte, e o conceito de “união” de indivíduos para perpetuação da espécie sem a preocupação com a explosão demográfica. Outro ponto importante foi a maneira como o autor lidou com um tema espinhoso: o sexo inter-racial (uma humana com um alienígena hermafrodita). A utilização de simulações em espaço virtual foi uma solução elegante não apenas para este problema, mas também para que possamos compreender o drama que advém dessa prática quando os personagens se encontram no “mundo real”. Até a antagonista, a inteligência artificial que comanda a nave, Hwantla, é interessante, mesmo seguindo ao pé da letra a cartilha de HAL-9000 (de 2001 –Uma Odisséia no Espaço).

Pecando apenas na conclusão, novamente apressada e entulhada de soluções rápidas, satisfatórias para os personagens, mas frustrantes ao leitor, “O Xenólogo de Sirius” é uma história intrigante o suficiente para merecer mais algumas páginas. Ou mesmo um romance mais extenso.

Nota: 

Título: Eram @s Deus@s Crononautas
Autor: Antonio Luiz M. C. Costa
Páginas: 585 posições (Kindle)
Editora: Draco
Ano: 2012

Após um defeito em um veículo de transporte interplanetário, Naji, um blimundano hermafrodita, e Yavi, um humano evoluído (Homo Novus) são enviados para a Terra pré-histórica, em uma vila ubaidiana de proto-humanos na Mesopotâmia. Incapazes de retornar a seu próprio tempo, eles acabam se incorporando àquela sociedade ancestral, compartilhando seus conhecimentos e sendo venerados como deuses.

A referência aqui é clara desde o título, parodiando o clássico pseudo-científico “Eram os Deuses Astronautas?”, de Erich Von Däniken. Este talvez seja o maior problema deste texto, visto que já sabemos seu desfecho assim que os protagonistas são enviados em sua viagem no tempo. Mas, superado isso, o texto consegue se sustentar, fugindo do maniqueísmo. O foco narrativo está na alienígena reptiliana, Naji, e em seu choque cultural por ser a única de sua espécie em um planeta primitivo. Já Yavi age quase como um robô, tomando decisões extremamente lógicas e tendo um conhecimento quase infinito, o que o torna um personagem pouco interessante, diferente de Naji, que reage às situações que a trama apresenta de maneira coerente e divertida. O momento em que ela “perde as estribeiras” é o ponto alto do texto, pecando apenas por ser tão curto e com uma solução muito fácil.

Da mesma maneira que “O Xenólogo de Sirius”, aqui também temos uma cena de sexo inter-racial. Mas diferente do outro texto, aqui sobra estranheza na descrição do ato, que soa forçado e fora do tom. E, de novo, temos uma resolução rápida demais e conveniente demais, diluindo o impacto que uma viagem no tempo como essa possa ter nos personagens e até mesmo no tecido da realidade.

Nota:




Em resumo, são histórias muito bem escritas, com uma fluência excelente e com grande inventividade na construção, especialmente no que diz respeito à biologia alienígena e nas tecnologias utilizadas, sempre coerentes e bem explicadas. Os protagonistas estão bem construídos, mas os personagens secundários mereciam um pouco mais de cuidado. As tramas, apesar de simples e diretas, são instigantes e convidam ao questionamento. Não é uma leitura recomendada para leitores pouco habituados à ficção científica, mas os leitores do gênero com certeza se divertirão com as tramas e as referências pinceladas aqui e ali.


P.S.: Nas três histórias há personagens hermafroditas (em duas delas são os protagonistas) e, devido a inexistência de uma grafia específica para este “terceiro gênero”, Antonio optou por utilizar o ‘@’ como caractere definidor de ambiguidade. Esta solução distrai o leitor e torna a leitura truncada (“El@” é “Ele”, “Ela”, “Elo”? Como se pronuncia? Elea? Elae? El-arroba? El-at?). Concordo que é preciso encontrar uma alternativa. Só não acho que ainda seja essa.

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