27 abril 2015

A Dupla Tríade do Personagem Único

"Quando escreve um livro um escritor deve criar pessoas vivas; pessoas, não personagens. Um personagem é uma caricatura." - Ernest Hemingway
O que é mais importante em uma história, a trama ou seus personagens?

Essa é uma questão que gera discussões acaloradas dentro dos chamados "círculos literários". Defensores da "alta literatura" (seja lá o que isso signifique) defendem que os personagens são o elemento mais importante de uma obra. Já os partidários da "literatura de gênero" (seja lá o que isso signifique) advogam justamente o contrário.

E qual deles está certo? Não sei. Não me importa. A única coisa certa aqui é que não há consenso. Sendo assim você, como escritor(a), deve decidir qual dos elementos dará mais importância por conta própria.

Mas, caso esteja disposto a aceitar uma sugestão (e, se você chegou até aqui, acredito que esteja) você não deveria entrar nessa disputa. Para o bem de sua história.
Explico: Ambos os elementos - personagens e trama - devem ter o mesmo grau de importância. Tender para qualquer lado irá apenas desbalancear sua história. A importância de uma obra é medida por sua perenidade, ou seja, pelo que permanecerá com o leitor após o término de sua leitura. Uma trama excitante com personagens fracos será tão descartável quanto uma trama frouxa e incoerente permeada de personagens bem construídos. O segredo não está em dar mais valor a um ou outro elemento, mas balancear uma trama bem resolvida com personagens marcantes. Qualquer coisa abaixo disso e sua obra fracassará no desafio do tempo.
Tendo isso em mente, é hora de investir um tempo na criação de seus personagens. Você já tem uma Premissa, construída com o auxílio do Tema e do Conceito (se não tiver, volte três casas). Nessa premissa deve ter sido delineado seu(sua) protagonista. Talvez um antagonista também. É com eles que você deve começar, mas não pode parar apenas neles. É hora de construir o elenco que irá sustentar sua trama, que irá vivenciá-la. Basicamente, há três tipos de personagens:

  • Primários (Protagonistas e Antagonistas): Estes são a essência de sua obra. É através de suas ações, reações e decisões que a trama se centrará. Seus destinos serão o ponto central da história, bem como as consequências de seus atos. Tudo girará em torno deles. Torceremos pelos protagonistas e contra os antagonistas. Eles serão o alvo de nossa empatia. Toda história PRECISA ter um ou mais protagonistas e uma força antagonista (que pode ou não ser uma pessoa). Sem esse embate não há conflito. Sem conflito não há história. 
  • Secundários (Coadjuvantes): Os coadjuvantes não são o centro de sua história, mas ainda assim eles serão essenciais para o andamento da trama. São eles que irão auxiliar e/ou atrapalhar tanto protagonistas quanto antagonistas. Eles darão apoio ou motivação de forma direta ou indireta. Serão confidentes, traidores, vítimas, portos seguros. Orbitarão os protagonistas e antagonistas em diversos momentos, seja auxiliando ou colocando tudo a perder.
  • Terciários (Apoio): São aqueles que surgem apenas em alguns momentos da trama, seja para dar verossimilhança a alguma cena, seja para apenas fazer figuração, mas aparecerão e desaparecerão quando necessário. Poderão ter envolvimento indireto na trama, mas isso não é um pré-requisito.

No processo de planejamento é essencial construir de forma abrangente os personagens primários. É importante também trabalhar bastante nos secundários, mas não precisa chegar ao grau de detalhismo dos primários. Já os terciários podem ser criados on the fly, ou durante a construção da trama. Mas é muito importante ter personagens primários e secundários bem construídos antes de começar a escrever.

Tenho certeza que você já deve ter ouvido sobre a importância de construir "personagens tridimensionais" para a sua obra, de modo a evitar maniqueísmos e superficialidades. Eu concordo, mas o que são personagens tridimensionais? Quais são as três dimensões que definem um bom personagem?
Dica: Não são essas.
Na geometria as três dimensões que definem um objeto são altura, largura e profundidade. Na criação literária as dimensões são dadas apenas pela profundidade que penetramos na psique de nosso personagem. Assim, as três dimensões do personagem são:

  • Primeira dimensão: Como o personagem é visto pelos outros.
  • Segunda dimensão: Como o personagem se enxerga, graças à sua história de vida.
  • Terceira dimensão: Como ele realmente é, ou como ele age quando está sob pressão.

Na primeira dimensão temos o trato mais superficial de sua personalidade. Como ele se veste, qual sua aparência, trejeitos, como ele fala, no que trabalha, etc. É a casca que ele apresenta ao mundo. E sim, é importante definir esses traços, pois será através deles que o personagem irá interagir com outros personagens.

Já na segunda dimensão penetramos mais um pouco. Aqui definimos ideologias, traumas, recordações relevantes, neuras, manias. Debaixo de nossas cascas todos temos um arcabouço de memórias, experiências e eventos que auxiliaram na construção do que somos. Todas as nossas decisões e atitudes podem ser justificadas por estes elementos, então é importante dar a seu personagem um histórico, uma vida pregressa, uma série de eventos que contribuíram em sua formação até o momento que ele entra na sua história.

E a terceira dimensão? Bom, esta é a que realmente o bicho pega. É aqui que um personagem deixa de ser um amontoado de características e memórias, e "cria vida" (por favor, note as aspas). Porque não interessa o quanto tenhamos vivenciado ou nos esforçado para acreditar em determinada coisa, quando o momento crucial chega, quando precisamos tomar uma decisão de vida e de morte, quando estamos no fio da navalha, é aí que mostramos nossas verdadeiras cores. Um pacifista pode causar uma guerra mundial. Um notório covarde pode realizar um ato heroico. Um gênio pode chegar a uma conclusão estúpida, pelo qual todo o Universo sofrerá as consequências.
"Por quê eu não matei Isildur quando tive chance?"
Mas não pense nisso como algo arbitrário. A terceira dimensão é a soma das duas primeiras, mas com uma pitada extra de tempero, algo inesperado até mesmo para o próprio personagem. E é nessa pitada que está a diferença entre um personagem bom e um inesquecível.

Parece complicado? E é, pode acreditar. Ninguém disse que seria fácil, ou que eu daria aqui todas as respostas (até porque não as tenho). Mas no próximo artigo explicarei uma técnica que, mesmo não sendo infalível, irá auxiliá-lo na criação de personagens tridimensionais.

Até lá.


Este artigo é o quinto de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui, o segundo aqui, o terceiro aqui e o quarto aqui. Continuem ligados para ler os próximos. 

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