15 abril 2015

A Conceituação do Conceito

"Escritores são pessoas desesperadas e quando elas deixam de ser desesperadas elas deixam de ser escritoras." - Bukowski
Talvez lendo os artigos anteriores desta série você tenha se perguntado: E quando é que vamos sentar e escrever? Afinal um escritor é uma pessoa que escreve, não é mesmo? Por que perder tanto tempo com detalhes que poderão mudar a qualquer momento, que me impedem de despejar no papel todas as histórias que estão fervilhando em minha cabeça? Histórias têm personagens, tramas e reviravoltas. Todo o resto aparecerá durante a realização. No máximo durante a revisão. Por quê não estamos escrevendo então? Por quê? POR QUÊ?!
Então deixa eu te contar uma coisa: Você já está escrevendo sua história. A diferença é que aqui você está deixando de lado toda essa coisa de tentativa-e-erro (e correção e revisão, e re-revisão, e etecéteras e tais) e está preparando o terreno antes de efetivamente sentar e escrever. É o que difere um escritor intuitivo de um planejador (como vimos no primeiro artigo dessa série). É a diferença entre simplesmente escrever e criar uma história envolvente, coerente e publicável.

Aqui cabe uma analogia. Imagine um pintor de quadros. Ele tem uma ideia para uma pintura, fruto de uma inspiração, ou encomenda, ou mesmo do tédio, tanto faz. Antes de sair despejando suas tintas na tela, ele fez estudos, esboços, rascunhos. Experimenta técnicas, se sentir que precisa. Faz todo um planejamento prévio já que terá pouca ou nenhuma chance de corrigir a obra depois que a tinta secar. Só quando está seguro do que pretende fazer, de como vai fazer,  é que ele monta o cavalete, separa suas tintas, escolhe os pincéis, limpa o godê e veste a boina.

Qualquer atividade é assim, sejam elas mais ou menos artísticas. Há a intenção, o planejamento e a realização. Cada qual em sua devida ordem, ou a chance de que o resultado saia satisfatório caem drasticamente. Um cirurgião que não planeja a operação nos seus mínimos detalhes corre o sério risco de perder o paciente. O engenheiro que só sai empilhando tijolos é, no mínimo, irresponsável. Toda atividade necessita de três coisas: conhecimento, planejamento e ferramentas.

Por quê com a literatura seria diferente?

No artigo anterior eu expliquei a primeira dessas ferramentas: o Tema. Ele será o norte que sua bússola apontará, que dará direção à sua história. Mas um tema não é o suficiente para que você comece a escrever. Não ainda. Um tema é apenas uma ideia, uma fagulha inicial. É preciso expandir o tema. Ampliá-lo. É preciso estabelecer um CONCEITO para a sua história.
E o que é o conceito de uma história? Um conceito é um pouco mais do que um tema, e um pouco menos do que uma premissa (veremos sobre premissas no próximo artigo). Um bom conceito estabelece as fronteiras do tema e planta a semente da história. É aquele que já começa a traçar as linhas gerais, mas sem se aprofundar na trama ou nos personagens ainda. É o desenho com grafite duro na folha de rascunho, voltando à analogia do pintor.

É quando você se faz uma pergunta do tipo "E se...?", descrevendo um cenário hipotético qualquer. E essa pergunta desencadeia uma série de perguntas semelhantes. E é dessas perguntas, dessa ânsia em respondê-las, que surgirá a história.

Deixe-me exemplificar. Abaixo listo alguns conceitos de histórias já escritas. Tenho certeza que você será capaz de reconhecê-las:
  • E se um rapaz fosse picado por uma aranha radioativa que desse a ele as habilidades de um aracnídeo?
  • E se o mundo estivesse dominado por máquinas que transformaram os humanos em baterias, e a realidade nada mais fosse que uma elaborada simulação implantada em nossos cérebros?
  • E se, em um mundo fantástico habitado por cavaleiros e dragões, um rei morresse e deixasse o trono para seu filho, sem saber que na verdade o garoto é fruto de um incesto de sua esposa com seu cunhado, culminando em uma guerra pela sucessão?
  • E se um casal de adolescentes apaixonados, vindos de famílias rivais, forjasse um pacto de suicídio que os levaria realmente à morte?
Deu pra entender, não deu? Perceba que os personagens, mesmo que em alguns casos tenham sido referenciados, na verdade não foram realmente construídos. São apenas esboços. O que interessa aqui não é quem irá ter sua história narrada, mas O QUÊ será contado, de onde partirá a história. Todo o resto, as tramas, subtramas, reviravoltas e conclusões germinarão deste primeiro conceito.
É importante destacar que, diferente de um tema, que permite a inclusão de diversos subtemas ao tema central, um bom conceito não tem essa flexibilidade. Uma história com diversos conceitos na verdade não tem nenhum. Estabeleça um conceito, expanda-o o quanto for necessário, mas mantenha o foco, ou sua história ficará desgovernada e sem sentido. 

Outra coisa: Seu conceito não precisa ser diretamente relacionado a seu tema, mas deve, de alguma forma, remeter a ele. Isso é essencial, ou então de nada valerá esse esforço inicial. Lembre-se: sua história existe para que você trate do tema escolhido, e o conceito é a uma de suas ferramenta para este fim.

Faça você este exercício. Tente extrair o conceito de alguma história que você já tenha lido ou de algum filme que tenha assistido. Lembre-se: não é hora de colocar personagens nem trama. Apenas fazer perguntas hipotéticas a respeito da história.

Depois faça isso com aquela história que você está matutando há tempos, aquela que você quer escrever.

Mas não faça isso apenas em sua mente. Sente e escreva. Abra um bloco de notas e coloque em palavras. Trace o primeiro esboço. Faça as perguntas certas. Algumas apenas, que deixarão você (e, se tudo der certo, seu leitor) intrigado a respondê-las. Coloque o máximo de drama possível, o máximo de tensão que puder colocar em um conceito hipotético. É a hora de pirar o cabeção. Cadê aquele uísque?

Algumas dicas:

  • Conceito não é sinopse! Esse é um erro comum. O conceito não é sobre o personagem, é sobre a história onde os personagens estarão circunscritos. É um questionamento que o fará pensar no que você faria naquela situação. Fique tranquilo que você escreverá a sinopse em breve.
  • Tenha culhões. Evite conceitos genéricos e sem brilho. "Garoto sai de casa e vive grandes aventuras" não é um conceito. "E se um garoto fugisse de casa para escapar de um pai abusivo e entrasse em uma gangue de viajantes do tempo?" é muito mais instigante, por exemplo.
  • Adicione Drama e Conflito. Sei que é difícil, em linhas conceituais, explorar o drama e o conflito, mas dentro dos limites estabelecidos é possível sim já prenunciar o que virá. Sua história precisará de drama e conflito para funcionar. É hora de dar uma pista sobre quais dramas e conflitos surgirão. "E se uma prisioneira de um campo de concentração nazista fosse obrigada por seus captores a escolher qual de seus dois filhos irá sobreviver?". Alguém tem dúvida que há drama e conflito nesse conceito?
  • Não exagere. Temos a tendência de expandir tudo o que sentamos para escrever. Se sua história está implorando para ser escrita (e lida), isso significa que está no caminho certo. Mas vamos por partes. Expanda seu conceito até o ponto que perceber que está começando a contar a história. E então pare. Você escreverá essa história depois. Conceito é uma coisa, história é outra. Devagar com o andor.
  • Seduza. Seu conceito precisa ser instigante, convidativo, interessante o suficiente para que um leitor separe um tempo livre para se dedicar à sua história. Olhe nos olhos deste leitor hipotético. Ofereça uma bebida e uma promessa de horas e horas de entretenimento recompensador. E seja seduzido também. Criar é se comprometer. Comprometa-se.
Como exemplo coloco o teaser trailer de Tomorrowland, o novo filme de Brad Bird (Os Incríveis, Gigante de Ferro), ainda não lançado, que mostra de maneira magistral o que é um conceito. Aliás, este trailer é um conceito em sua forma mais pura. Temos vislumbres dos personagens e da premissa, mas nada além disso. Ele levanta uma questão hipotética instigante, e termina com uma simples pergunta: "Gostaria de ir?"

Eu sei que gostaria. E que vou.


Este artigo é o terceiro de uma série sobre a aplicação de metodologias no processo de escrita. O primeiro pode ser lido aqui e o segundo aqui. Continuem ligados para ler os próximos.

Nenhum comentário: