Há um sentimento quando se lê um bom livro, que se instala no leitor pouco antes de seu final. É um sentimento conflitante e angustiante. Você quer saber como a história termina, mas ao mesmo tempo não quer que ela acabe, devolvendo-o à sua realidade prosaica e destemperada. Há um sentimento de orfandade, de inevitabilidade. Desagradável, até.
Ironicamente, este sentimento não acontece com o primeiro livro de Alan Moore (se ainda não o conhece, deveria). Não acontece pois a leitura de A Voz do Fogo (2002, Conrad Editora, 331 págs.) é desgastante, cansativa, exaustiva. Não que o livro seja ruim, muito pelo contrário. Mas a experiência é tão rica e tão avassaladora que nós, pobres e incautos leitores, somos pegos de surpresa. Uma surpresa boa, é claro, mas nem por isso menos exaustiva.
O livro tem uma premissa simples: Doze contos sobre doze personagens pinçados em cinco mil anos de história, tendo como único ponto comum sua localização geográfica (a cidade-natal do escritor, Northampton, na Inglaterra). Sim, Moore transcende o tempo mas limita o espaço, o que por si só já seria um exercício narrativo instigante. Mas o recluso autor de Watchmen e A Piada Mortal (entre outros clássicos absolutos das HQ's) inova não só no conteúdo, mas também na forma. Cada conto é narrado na primeira pessoa do presente, utilizando experimentações de voz narrativa que vão muito além do trivial. O primeiro conto já faz parte do folclore literário, e só ele já justifica a aquisição do livro. Dizem por aí que Moore limitou seu vocabulário a 400 palavras (incluindo artigos e pronomes), de modo a "reproduzir" a linguagem primitiva da idade do bronze. coisa que não pude comprovar pois li a versão traduzida. Aliás, me compadeço da tradutora, Ludimila Hashimoto Barros. Se ler já foi um esforço monstruoso, imagino o que não deve ter sido traduzir. Um trecho, apenas para ilustrar:
"Por trás de colina, lado onde sol desce, está céu como fogo. Subo para lá, é tudo difícil de respirar, onde grama está esfriando em pés de eu, molhando eles".
Deu para perceber, não é? Além do vocabulário limitado, Moore também abriu mão das regras gramaticais, reduzindo-as a um mínimo que, mesmo compreensível, não é de leitura fácil. Aliás, numa das poucas entrevistas concedidas pelo autor na ocasião do lançamento, ele já avisava: "Boa sorte com o primeiro capítulo".
Mas ele não pára por aí. A cada conto novo nos deparamos com figuras bizarras, com histórias envolventes e por vezes assombrosas. Não há finais óbvios, bem amarrados. Não há pistas de entrelaçamento entre as histórias. É como se telepaticamente perscrutássemos a mente dos personagens retratados enquanto estes vivenciam suas desventuras, mesmo que estas sejam narradas por uma cabeça decapitada pendurada em uma muralha medieval ou uma bruxa que relembra sua vida enquanto as chamas consomem seu corpo.
No último conto, o autor se torna personagem, se igualando a todos os outros que o precederam, colocando-o no mesmo patamar. Há um exercício de metalinguagem soberbo, que reproduzo abaixo:
"Afasto-me da tela, do texto e do cursor, de sua pulsação de transe hipnótico. Tomo consciência do ardor dos olhos, da mesa transbordante. O cinzeiro oco em forma de rã bocejando, uma grande cascata de pontas de cigarros e restos azedos derramando de sua garganta de porcelana. O dedo indicador da mão direita suspenso acima das teclas. O autor digita as palavras 'o autor digita as palavras'".
Ao final, a leitura não é satisfatória. O conhecimento de que aquelas histórias, por mais exercícios de ficção que possam ser, foram baseados em casos reais (ou quase) deixa-nos com vontade de conhecer mais, de vivenciar novas experiências alheias, em qualquer época que o autor escolher. Mas ao mesmo tempo não sabemos se seríamos capazes de suportar mais do que as trezentas páginas que Moore nos permite invadir. Há o desgaste, mas com um gosto de quero mais. Como após uma boa noitada de sexo ou de uma lauta refeição.
Mas, afinal, sobre o que é o livro? Novamente, deixo o próprio autor explicar:
"É sobre a mensagem vital que os lábios rijos de homens decapitados ainda exprimem. O testemunho de cães pretos e espectrais escritos com xixi em nossos pesadelos. É sobre ressuscitar os mortos para que nos contem o que sabem. É uma ponte, uma passagem, um ponto gasto na cortina entre o nosso mundo e o submundo, entre a argamassa e o mito, o fato e a ficção. Uma gaze puída mais fina que uma página. É sobre a capacidade sobrenatural das bruxas de falar línguas desconhecidas e a sua revisão mágica dos textos nos quais vivemos. Nada disso é exprimível em palavras".
O que esperar de uma obra com uma descrição como esta?
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