Há vários motivos que levam um autor a matar um personagem. Necessidade da trama, aumentar a importância da história, gerar impacto ao leitor, encerrar um arco narrativo, etc. O destino dos personagens está intimamente ligado à história a ser contada. Sua vida, decisões e morte são titeteiradas de acordo com as vontades de seu criador, esse
Deux Ex Machina incontrolável e mimado.
E há personagens que morrem por outras razões. Mas antes de falar de morte, vamos falar de nascimento.
Personagens Semi-BiográficosTodo escritor deixa um pouco de si próprio em seus protagonistas. É assim mesmo, não se preocupe se seus amigos leitores (que são diferentes de seus leitores amigos) freqüentemente confundirem seu protagonista com você. Não há nada de errado nisso. Quando criamos um protagonista (ou mesmo um antagonista, mas isso é mais raro) usamos um reflexo borrado de nós mesmos. Mesmo que suas biografias sejam diferentes, suas reações, premissas e ideologias são bastante próximas às nossas.
Mas há casos que esta semelhança é maior do que o normalmente recomendável. Há vários exemplos de personagens que não eram apenas inspirados no autor, mas na verdade alter egos do próprio. Não é sutil. É realmente o autor com outro nome. É o caso do
Henry Chinaski de
Charles Bukowski, do
Arturo Bandini de
John Fante e até mesmo o excêntrico
Kilgore Trout de
Kurt Vonnegut.
E, guardadas as devidas proporções, era o caso de Zebedeu comigo.
Gênese de um mau caráterOs personagens e autores citados aí em cima não foram exemplos coletados ao acaso. Eles foram a inspiração para a criação do meu alter ego ficcional. Zebedeu era um misto da escrotidão de Chinaski, o idealismo quase inocente de Bandini e a alucinação psicodélica de Trout. Mas é claro que esta mistura não seria o suficiente. Eram a "base superficial", mas no cerne ele seria algo como eu mesmo sem freios morais. Uma versão minha com uma biografia diferente e sem papas na língua. A alcunha "psicopata enrustido" veio de alguém que me chamou assim certa vez (não lembro quem). O nome veio de um diálogo ocorrido numa reunião, quando um estagiário foi inquirido de alguma coisa e perguntou, inocente: "Eu?", ao que o gerente delicado como uma motosserra enferrujada respondeu: "Não, o Zebedeu!". Entendeu a sagacidade? A rima? A sutileza?
Foi desse modo que, em abril de 2004, o
primeiro blog nasceu: como uma válvula de escape. Protegido pelo anonimato do personagem eu podia falar o que bem entendesse sem receio de ser mal interpretado ou ofender alguém. Eu era recém casado na época e certas frustrações não cabiam muito bem num relacionamento ainda em formação.
CrescimentoOs primeiros textos eram extremamente simples e bobos. Eram apenas um espelho de minha frustração latente com tudo (carreira, literatura, casamento, etc.). Não passavam de textos raivosos e, na maioria, impublicáveis. Mas serviam bem para seu objetivo primordial: era quase uma terapia escrevê-los. Não havia pretensões artísticas. Não havia interesse em divulgação nem nada disso. Tanto que a referência a meu nome estava extremamente discreta.
Só que, em algum momento, os leitores o descobriram. As visitas e comentários começaram a crescer dia a dia. Formalizei o formato "cartas ao doutor", que colocavam cada leitor no papel deste "doutor", e comecei a me preocupar mais e mais com o estilo e com os temas. Zebedeu de uma hora para outra deixou de ser uma válvula de escape e se tornou um personagem.
Era hora de levar aquela brincadeira mais a sério.
EmancipaçãoQuando percebi que aquele personagem tinha potencial para algo mais que um mero diário decidi mudar tudo, começando pelo próprio endereço. Migrei para uma plataforma mais robusta (ao menos na época) e batalhei no visual. Também foi nessa época que decidi escancarar a identidade secreta de Zebedeu, o que gerou críticas mas ao mesmo tempo me ajudou bastante na transformação daquele espaço de um repositório de asneiras para uma coisa mais literária, mais experimental. Foi aí que realmente Zebedeu abriu as asas e saiu do ninho. Suas histórias ainda era quase que totalmente fictícias, refletindo não fatos mas sentimentos do autor. Brinquei com estilos, experimentei formas diferentes, tornei o blog um autêntico laboratório. E isso ajudou muito na minha formação como escritor. Ao menos muito mais que qualquer oficina de escrita criativa que eu pudesse ter feito. Há posts lá que eu considero alguns meus melhores trabalhos. E os leitores continuavam aparecendo.
DecadênciaEm abril de 2007 um fato acarretou uma mudança drástica na temática do blog: meu casamento havia terminado. Eu, novamente solteiro, saí da segurança de meu castelo e voltei ao mundo das incertezas. Pela primeira vez desde sua concepção criador e criatura realmente se confundiam. Os textos deixaram de ser fictícios e começaram a refletir a realidade muito mais do que deveriam. De uma hora para a outra a piada invadiu minha vida. Eu estava me tornando o personagem que havia criado. Como ele mesmo diria: "Freud, é com você, meu filho!".
Inicialmente aquilo me divertiu um bocado. Tirando certas idiossincrasias que inseri apenas para fins humorísticos, Zebedeu era realmente um reflexo de minhas ansiedades como ser humano. Eu queria ser aquele cara. E, mesmo sem perceber, foi o que acabou acontecendo.
Mas aí a piada perdeu a graça.
E não só a graça, mas também o sentido. Não havia mais motivo para eu escrever aquele diário. Não era mais ficção, não era mais válvula de escape. Era apenas uma fotografia, um filme destinado a
voyeurs. As experiências literárias desapareceram. Os estilos lingüísticos, as brincadeiras narrativas, tudo. Os textos começaram a ficar insossos, mornos, requentados. Os leitores perceberam. Eu percebi.
Só não queria assumir isso.
A MorteCom a decadência dos textos e, principalmente, de meu tesão por escrever novas aventuras "zebedianas" a idéia de encerrar o blog surgiu em diversas oportunidades, mas eu nunca efetivamente a realizava. Faltava coragem. Era um personagem muito caro para mim. Lembro-me que no auge de seu sucesso perguntaram-me por que a freqüência dos textos era tão baixa (em média 3 por mês, quando tanto). Respondi que eu primava mais pela qualidade do que pela assiduidade. E é verdade, tanto que nos últimos meses a freqüência decaiu bastante. O problema é que junto com ela também foi a qualidade. Já não eram os textos que me davam orgulho e prazer em escrevê-los e relê-los. Eram quase uma paródia de mim mesmo. Tentei retornar à ficção mas soou vazio. Tentei fazer exercícios mas nada muito original saiu. A fonte tinha secado. A inspiração havia desaparecido. O tesão acabado.
Sendo assim decidi finalmente encerrar essa fase de minha vida. A primeira opção era simplesmente abandonar o blog. Descartei de imediato. Seria um desrespeito a meus leitores. Escrevi então um tipo de recado numa secretária eletrônica, avisando que Zebedeu estava ausente. Cheguei a publicar, mas apaguei em seguida. Aquela não era uma saída honrosa e nem digna do personagem. Foi então que decidi repetir um dos encontros icônicos dele comigo (como vocês podem reler
aqui e
aqui) e dar, além de um encerramento digno, também uma explicação de minha decisão. Não o matei nem o desenrusti, como muitos previam, mas simplesmente tirei dele aquilo o que o tornava único. Curei-o.
Curei-me.
Zebedeu foi um marco em minha vida, não apenas literária. Foi, por mais esquizofrênico que isso possa soar, um de meus melhores amigos nestes quatro anos juntos. Aprendi muita coisa com ele. Desabafei coisas que nunca conseguiria desabafar na realidade. Cresci como escritor e como ser humano. E agora deixo-o livre de mim de uma vez por todas. É hora de novos horizontes, novos personagens, novas tramas.
Vai nessa, Zebedeu. Missão cumprida, rapaz. E vê se não volta.
Mas, caso volte, estarei aqui para narrar suas desventuras.