Uma das críticas mais comuns que costumo receber sobre meu primeiro romance, o Legado de Bathory, é justamente sobre o quão raso foi o antagonista no meio de tantos personagens comparativamente muito mais tridimensionais. Dizem que falta a ele uma motivação clara, que sua presença parece jogada só para gerar uma crise, etc. Eu normalmente concordo com esta crítica. Realmente em uma análise superficial (ah, a ironia...) ele não tem uma motivação clara, e a explicação ao final também não é satisfatória. Mas eu normalmente volto o questionamento ao questionador e pergunto: E daí?
Quando estava esboçando a trama já tinha claro em minha cabeça apenas dois personagens: Yara e Laszlo. Os protagonistas. Daí, ao desenhar o antagonista, imaginei-o apenas como um maluco com sonhos de grandeza. Um sujeito delirante caçando fantasmas auto-infligidos. Ao ver isso, cometi um dos piores erros que um romancista pode cometer quando está criando um personagem: eu "forcei" uma motivação.
Sim, é isso mesmo o que estou dizendo. Ao forçar um motivo para suas atitudes eu acabei diluindo sua força como personagem. A tentativa patética de explicar tudo na derradeira cena é uma tentação demasiado grande, mas que deve ser evitada sempre. É o que costumo chamar de "final Scooby Doo". Não há motivos para o vilão explicar todo seu plano, todos seus objetivos nem aos protagonistas nem aos leitores. Por que não? Bem, vou usar dois exemplos recentes dos filmes para exemplificar melhor.
Um deles, é claro, vem do magnífico Coringa criado pelo finado ator Heath Ledger e pelos roteiristas David Goyer e Christopher Nolan para o recente blockbuster Batman: o Cavaleiro das Trevas. Não vou nem comentar a atuação impecável ou o roteiro bem amarrado, mas sim as cenas em que o Coringa "inventa" sua origem, cada vez de maneira completamente diversa. Não sabemos se alguma delas é verdade ou se nenhuma é! Isso cria uma sensação incômoda. Se não sabemos o que originou a crise, como poderemos resolvê-la? Por que aquele cara decidiu se vestir de palhaço e sair matando tanto mafiosos quanto policiais a seu bel prazer? "É tudo parte do plano", diz ele a certa altura, mas que plano é este? O que o levou a tomar a decisão de gerar o caos na vida dos protagonistas? Simplesmente porque sim? Há alguma outra motivação escondida? Nós, como seres calcados na racionalidade ficamos órfãos ao descobrir que este mistério é totalmente insolúvel. E isso acabou, em minha opinião, elevando o personagem de um patamar intrigante a um completamente assustador.
Outro exemplo é o recém lançado Violência Gratuita, refilmagem do clássico cult Funny Games de 1997 (escrito e dirigido em ambas as versões por Michael Haneke). Nele dois garotos jovens, limpos e bonitos atacam e torturam física e psicologicamente uma família sem nenhum motivo aparente. Coincidentemente há uma cena que remete bastante ao recurso utilizado pelo Coringa. Em certo momento as vítimas perguntam qual o motivo de tamanho suplício (no exato momento que nós, espectadores, também nos perguntamos) e um dos garotos desfia duas explicações completamente distintas. Ante a perplexidade da família (e nossa!) ele solta uma pergunta: "Quer que eu continue? Posso inventar outra". É uma cena desesperadora, mas incrivelmente coerente. Por que o "vilão" precisa se explicar à sua vítima? Para dar um alento ao seu sofrimento vindouro? Para tornar seu suplício mais "lógico"? Ou simplesmente para se justificar ou se desculpar? A verdade é que um antagonista pode até ter motivos para fazer o que faz, mas não precisa se justificar com ninguém!
Um bom vilão nem mesmo precisa ser um vilão. Um bom antagonista se acha o protagonista de sua própria trama. Ele acha sinceramente que está fazendo o que é certo de acordo com seus valores e julgamentos. Ele deve ser criado desta maneira. Na mente do escritor pode até existir um motivo, o que pode até adicionar profundidade ao personagem, mas essas motivações não precisam necessariamente ser explicadas num diálogo didático transcorrido convenientemente no momento de maior tensão da trama. A vida não se preocupa em fechar pontas soltas e às vezes tragédias ocorrem sem um sentido claro. A frustração faz parte da vida, então por que não também da ficção?
A criação de antagonistas tridimensionais e verossímeis somente ajuda na carga dramática da trama. Um vilão empático gera conflito do leitor/expectador, que em uma certa situação não sabe pra quem deve torcer, pois mesmo sem compreender completamente sabemos que DEVE haver uma razão para aquelas atitudes. Às vezes sabermos o quanto menos sobre a história a enriquecerá, pois criaremos uma miríade de possíveis explicações em nossas mentes. Qual será a certa? Existe uma explicação? Esse conflito é extremamente saudável, pois gera o que chamo de "releitura mental" do texto após o fim da leitura propriamente dita. Você revisa o que aconteceu, tenta tirar dali uma lógica, uma explicação, apenas para descobrir que aquela se tornou uma história inesquecível.
Sendo assim, não cometam o mesmo erro que cometi. Planejem bem seus antagonistas, talvez até mais que os protagonistas. E não se esqueçam desta única dica: um bom vilão acha que é o herói da história.
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