01 outubro 2008

Maria Eduarda


Ela não chegou de mansinho. Chegou berrando, histérica, perdida, sozinha. Foi na noite em que eu, por alguma razão inexplicável, fui a um teatro fazer um teste para entrar na peça. Justo eu, que como ator sou um péssimo escritor. Encontrei-a encolhida apavorada debaixo de um carro no estacionamento do teatro. Chamei-a e ela veio correndo. Antes que eu pudesse pensar em qualquer temor besta ela já estava se aninhando em meu colo.

O teste foi engraçado por conta dela. Todos da trupe ajudaram a cuidar dela enquanto o teste transcorria, o que gerou cenas engraçadas mas que nada tinham a ver com a peça. Era ela, que com sua simples presença acendeu a todos. Brega, né? Mas quem tava lá se lembra.

Sem outra opção levei-a para casa. No caminho mesmo já havia percebido que minha vida havia sido tomada de assalto. Ela tinha me escolhido e vindo pra ficar. Sua recepção não poderia ter sido melhor. Em poucos minutos ela já havia se ajeitado. Tão pequena, tão indefesa, tomou conta da casa e transformou-a em seu lar.

Logo na primeira consulta veterinária recebemos um susto e um mistério. O susto: ela tinha caroços nas mamas, que precisariam ser operadas. Noventa e sete por cento de chance de eliminar tudo, disse a veterinária (uma ruivinha nanica toda sorridente, meio Felícia, manja?). O mistério: ela parecia filhote, mas câncer de mama não aparece em gatos com menos de 10 anos. Pela primeira vez na vida não vi apenas um, mas vários veterinários sem saber precisar a idade dela. O mistério perdura até hoje. A última estimativa é de que ela devia ter de um a dois anos de idade quando a encontramos, e que uma possível desnutrição tivesse adiado seu crescimento. Sei lá. Tanto faz. Ela cresceu um pouco ainda depois disso, então tudo bem.

Marcamos a cirurgia de castração e eliminação do câncer. Tudo correu bem, menos a recuperação. Mostrando o vigor da juventude misteriosa, foi difícil controlá-la. Tivemos que a levar algumas vezes de volta ao veterinário para refazer os curativos. Infelizmente descobrimos do pior jeito possível que havia um problema em sua cicatrização. Depois que os pontos foram retirados a cicatriz se abriu em alguns pontos. Foram semanas difíceis depois disso, mas conseguimos superar essa e ela ficou sem nenhuma seqüela.

Ela se tornou parte da vida em casa. Carente eterna, não abria mão de um colo. E entrar no colo para ela era um ritual que não devia ser interrompido. Começava com o cortejo, a olhada, a aproximação resoluta, o "amassar de pão" tão característicamente felino que para ela era quase um mantra, elevando-a para o conforto subseqüente. E quando ele vinha era pra durar. Coisa mais deliciosa ser seu colo.

E o nome? Incapaz de me decidir passei a responsabilidade para uma garotinha que encontrei certa vez num bar. Lembro-me de ficar intrigado ao ver uma garotinha tão tarde em um bar, mas depois me apresentaram sua mãe e a história do falecimento do pai da garotinha. Não sei porque lembrei disso agora, mas foi essa história que me fez decidir que seria a garotinha quem nomearia minha gata. Mostrei a ela uma foto no celular e ela bateu na cintura e me olhou com aquela cara de impaciência indignada tão comum em crianças inteligentes: "É óbvio! Maria Eduarda!". Pronto.

Muito prazer

Bem que tentaram logo em seguida apelidá-la de "Duda", mas não pegou. Era Maria Eduarda mesmo. Dois nomes para quem há poucos dias não tinha nem proteínas suficientes para crescer direito. Isso é que é moral. Moral essa que logo se fez presente. Da doce e abandonada gatinha, Maria Eduarda, agora nomeada, tornou-se a dona da casa. Eram freqüentes as broncas quando chegávamos tarde e bêbados. As crises de ciúmes quando trazíamos mulheres para competir nossa atenção. As reclamações quando esquecíamos de manter seu prato cheio. Ela impunha essa moral, mas no final sempre dormia tranqüila em meu colo. Fosse a crise que fosse, um bom colo era a solução para tudo.

Aos poucos ela se acostumou com a falta de rotina aqui de casa. Ela percebeu que não conseguiria competir com uma vida social ativa e então se adaptou. Fez amizade com todo mundo que passou por aqui, sem distinções. Claro, se deu melhor com alguns do que com outros, mas nunca brigou com ninguém. E olha que não faltou motivo, hein?

Criativa, nunca elegeu um único lugar como seu canto. elegia um por duas, três semanas no máximo. Depois elegia outro. Seu último eleito foi a cadeira do computador. Isso mesmo depois que compramos a ela uma cama (que ficava no topo de um arranhador, para tentar salvar o que restava do sofá). Ela usou a cama. Por duas ou três semanas. Mas o arranhador ajudou bastante.

Cama nova? Não, prefiro essa caixa velha.

Tinha um olhar carinhoso, mesmo que certas vezes um tanto inquisidor, apesar de eu creditar essa impressão a uma possível consciência pesada de minha parte. Mas nunca com qualquer forma de julgamento. Era um olhar que transmitia uma cumplicidade, uma confiança mútua.

Confiança que foi posta à prova há cerca de um mês. Aqueles três por cento que a veterinária-Felícia havia omitido voltavam revigorados. Como é? Sim, o câncer havia voltado. Aquele mesmo câncer que só acometia gatas mais velhas. Uma quimioterapia estava fora de cogitação. Tinha que ser operada. O mais rápido possível. Riscos altíssimos de ela não resistir nem à cirurgia. Recuperação lenta e dolorosa.

Bom, resumindo a história para não remoer memórias amargas, ela não resistiu. Sobreviveu à cirurgia mas, depois de duas semanas de uma lenta e dolorosa recuperação, hoje à tarde ela desistiu de continuar lutando. Morreu sozinha na sala da casa que era seu lar. Não interessam os detalhes. Ela se foi, pouco mais de um ano após ter chegado. Deixou-nos com uma dor irreparável no coração. Deixou também as saudades. As noites solitárias acabam de se tornar muito mais solitárias.

Você foi uma alegria em nossas vidas, Maria Eduarda. Obrigado por tudo o que você fez pela gente. Nunca conseguiríamos recompensá-la o suficiente, nem com todos os frangos assados do mundo. Garanto.

Só nos desculpe pela tristeza. Infelizmente essa dor não vai poder ser solucionada te dando um colo.

Então, adeus.


P.S.: Gostaria de agradecer, além de todo mundo que se envolveu e se solidarizou nesses últimos dias, especialmente a Dra. Marília, do Instituto Dog Bakery, por todo o esforço em prol da recuperação da Maria Eduarda. Nós tentamos. Valeu.

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