08 janeiro 2007

Café-da-manhã dos Campeões - Kurt Vonnegut

O melhor momento de se encontrar determinada obra depende muito do leitor. É por esta razão que talvez só agora eu esteja realmente me abrindo a alguns autores que antes nem tinha ouvido falar. Eis que, quando Sérgio Rodrigues, do Todoprosa escreveu uma chamada sobre um livro de Kurt Vonnegut, eu fiquei com uma pulga. A chamada terminava com o instigante parágrafo:

"Autor de pelo menos uma obra-prima incontornável da ficção americana no século XX, Matadouro 5 (hoje mais fácil de encontrar por aqui numa edição de bolso da L&PM), Vonnegut sempre ajuda a arejar o ambiente".

Lembrei-me do título do livro numa de minhas fuçadas na, acreditem, seção de livros do Carrefour do lado de casa. Lá tinha uma daquelas estantes giratórias da L&PM cheia de livros de bolso (que eu chamo de curingas de bolso, pois sempre ajudavam a tapar um buraco entre um livro e outro com um clássico barato, em termos monetários, bem entendido). Fui até o mercado e comprei o tal livro. E imediatamente me apaixonei pela prosa insana de Vonnegut.

Matadouro 5 é um livro ímpar em vários sentidos, mas outro dia publico uma resenha dele com a calma que a obra merece. Esta aqui vai para o segundo livro que li do autor, Café da Manhã dos Campeões (2006, LP&M). Nele Vonnegut destrincha, com sua narrativa alinear e carregada de metalinguagem, grande parte da sociedade americana. O livro é narrado como um pequeno documentário a ser apresentado, talvez, a alienígenas interessados na população de bípedes supostamente racionais que habitam a terceira rocha a partir do Sol. Deste modo o texto é carregado de didatismo, cheio de descrições óbvias e impregnadas de sarcasmo, entremeadas com desenhos toscos do próprio autor que servem para ilustrar pontos que não necessitariam de descrições longas e maçantes. O autor toma como exemplo da vida na Terra duas pessoas: o escritor de ficção científica Kilgore Trout e o vendedor de carros Dwayne Hoover. Este último, descobrimos logo no começo da história, irá enlouquecer e ter uma crise violenta na fictícia cidade de Midland (que, num trocadilho bem óbvio, fica fincada no meio dos EUA). Tomando isso como ponto de partida, Vonnegut vai e vêm no tempo e no espaço, numa história onde ele mesmo é um personagem, o Criador não do Universo, mas daquele universo. E o criador sabe que tudo o que está se passando é apenas uma ficção originada de sua cabeça. Alguém aí disse Charlie Kaufmann ou Adaptação? Esqueçam. O livro de Vonnegut foi lançado em 1973.

A trama é desvelada aos poucos, inicialmente pelo final, depois numa desordem deliciosa. Vamos desvendando cada trecho, cada idéia em meio a digressões filosóficas carregadas de ironia e sarcasmo, tão típicas da sátira que Vonnegut se especializou em criar. Os melhores momentos são quando ele mesmo interfere nas descrições e joga pesado com a sociedade americana, como no trecho abaixo (tradução de Cássia Zanon):

"Conforme meu quinqüagésimo aniversário se aproximava, tornava-me mais e mais enfurecido e assombrado pelas decisões estúpidas tomadas pelos meus compatriotas. E então, de repente, comecei a sentir pena deles, porque compreendi como para eles era inocente e natural se comportar de modo tão abominável e com resultados tão abomináveis: estavam fazendo o melhor possível para viverem pessoas inventadas em livros de histórias. Este era o motivo pelo qual os americanos matavam uns aos outros a tiro com tanta freqüência: era um truque literário conveniente para terminar contos e livros. Por que tantos americanos eram tratados por seus governos como se suas vidas fossem descartáveis como lenços de papel? (...) Porque era assim que os autores costumavam tratar os personagens menores em suas histórias inventadas".

Logo a seguir o autor/criador descreve a decisão que tomou a partir da conclusão acima:

"Eu escreveria sobre a vida. Cada pessoa seria exatamente tão importante quanto qualquer outra. Todos os fatos também receberiam o mesmo peso. Nada seria deixado de fora Deixaria os outros trazerem ordem ao caos. Eu, em vez disso, traria caos à ordem, o que acho que acabei fazendo.

Se todos os escritores fizessem isso, talvez os cidadãos fora dos ofícios literários compreendessem que não há ordem no mundo ao nosso redor, que, em vez disso, devemos nos adaptar às exigências do caos".

E é exatamente o que ele faz. Não há ordem alguma em seu caos narrativo, não há resolução ou mesmo uma lição a ser tirada na trama como um todo, mas sim pulverizadas aqui e ali para que leitores atentos as descubram. No final das contas o tal acontecimento antevisto não é nem um pouco importante. Nem mesmo o título da obra é realmente importante, sendo sua referência apenas mais uma casualidade narrada de maneira quase acidental. Mas a soma de fatos desimportantes é o que torna todo o livro essencial. É nesta contradição que se encontra o grande charme da história.

Café-da-manhã dos Campeões não é melhor que o indefectível Matadouro 5, mas é um exercício de leitura interessantíssimo, daqueles que você pode amar ou odiar, mas nunca ficar sem opinião. Até porque sua opinião, de acordo com a ideologia do autor/criado, É importante.

P.S. 1: A imagem abaixo veio no Google quando procurei por imagens da capa através do título do livro. Pode não ter nada a ver, mas vale o registro pela coincidência divertida.
P.S.2: O pôste do Psicopata Enrustido, Desjejum dos Perdedores foi obviamente uma homenagem ao livro e a um de seus personagens.

P.S.3: Ainda está muito caro.

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