É freqüentemente dito que há algumas coisas que um artista não deve fazer, e que uma delas é confessar a própria ignorância, ao menos em sua área de atuação. É, claro, uma atitude covarde e que menosprezo. E é então por esta razão que assumo abertamente: Não li Cem Anos de Solidão, do Gabriel García Márquez.
Não li e pronto. Juro que tentei, mas não estava numa fase propícia para a leitura. Sei lá, o livro simplesmente não me ganhou e eu nunca mais retornei a ele. Ficou na lista dos reservas em caso de estiagem literária, que até hoje não aconteceu. Já tive safras ótimas e péssimas, mas nunca magras o suficiente para que eu retornasse ao velho ganhador do Nobel.
Claro, já deixei de ler diversos dos clássicos intitulados "indispensáveis", mas isto não vem ao caso. Uma confissão por vez. Só confessei este em particular pois acabei de ler Memórias de Minhas Putas Tristes, do mesmo Gabriel García Márquez, que ganhei de amigo secreto e devorei. Os mais puristas já devem estar arrepiados. "Finalmente!", exultarão. "Agora ele ficou maduro!". Pode ser, pode ser. Vamos com calma. O fato é que este livro, diferente do outro, fala a minha língua. Márquez foge dos regionalismos e opta por uma narrativa intimista e carregada de melancolia (muito semelhante, sem falsa modéstia, ao estilo que uso no blogue do Psicopata Enrustido). Logo nos primeiros capítulos somos arremessados a uma situação tão insólita que se torna verossímil pela frugalidade com que é narrada. Às vésperas de completar 90 anos o protagonista (seu nome não é revelado) decide contratar uma prostituta virgem. Antes que assimilemos a idéia (que pode ser considerada até mesmo repugnante) ele já telefonou para a cafetina e acertou tudo. A partir daí o ritmo desacelera e justifica o título. Vemos um velho escritor narrando passagens marcantes de uma vida medíocre, sem as esperanças e aspirações da juventude. E é neste contraponto que a obra finalmente fisga o leitor.
O protagonista, na melhor tradição bukowskiana ou mesmo beatnik, é uma criatura desprezível. Tão desprezível que ele mesmo se menospreza diversas vezes durante a narrativa, tornando até mesmo a própria visão no espelho uma imagem desagradável. É neste aspecto que Márquez cria a empatia com o leitor. O fato do velho ter consciência de que é uma criatura repreensível e moralmente falha faz com que, se não simpatia, geremos ao menos compreensão por seus atos (especialmente quando ele diz que nunca teve uma mulher que não precisasse pagar pela companhia, e mesmo as que não cobravam ele fazia questão de pagá-las, como alguém pouco disposto a aceitar indulgências).
A partir deste momento deixamos de nos importar com a possibilidade de testemunharmos o estupro de uma menina de 14 anos, virgem e empobrecida, nas mãos de um pedófilo quase centenário. O ato grotesco que poderia acontecer ao invés disso se torna um lamento, uma agonia, pois a paixão que surge do velho pela garota (sempre adormecida) é quase inocente, platônica, idealizada. E a tristeza com que ele percebe que aquela era a primeira vez em sua vida que ele se apaixonara, e que não tinha muito tempo de vida para usufruir daquela paixão é de uma tristeza contagiante, pois percebemos junto com o protagonista que sua vida foi desperdiçada em um vazio sem amor.
O final é tão melancólico quanto todo o livro, deixando pontas soltas e perguntas sem respostas, como uma vida que de repente se finda sem que todas as pendências sejam resolvidas. O sentimento ao terminar a leitura é de um anti-clímax, de cumplicidade com uma perversão que não se consuma mas nos consome. E o que fica não é culpa, mas angústia.
Vamos ver se agora, após esta curta mas extremamente prazerosa leitura eu consiga finalmente preencher a lacuna em minha bibliografia e ler de uma vez por todas o livro que fez de Gabriel García Márquez o monstro literário de hoje. Acho que estou maduro o suficiente para tanto.
(Sei que ando meio sumido, mas foi por razões proletárias além de meu controle. Espero retomar o ritmo agora. Aliás, tem pôste novo no Psicopata Enrustido. Já leu?)
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