– Eu tenho as respostas para as questões de Metafísica! – Berrou o velho Estereótipo, fazendo uma pequena pausa dramática enquanto esfregava as mãos e sorria com o canto da barba. – Descobri que somos criação de uma divindade assombrosa, uma criatura tão sábia e poderosa que não só criou todos nós, mas também todo o mundo, o céu e as estrelas. E, assim que cheguei a esta conclusão, ele pessoalmente surgiu à minha frente e me explicou de onde viemos, para onde vamos e porque estamos aqui. É por isso que voltei, para redigir estas instruções, para que sejam seguidas por todos nós.
– E qual o nome dessa divindade? – perguntou Cético, pouco satisfeito com a explicação.
– Ele não tem um nome, mas como ele se manifestou a um de nós creio que podemos considerá-lo um dos nossos. Desta maneira vamos chamá-lo, a partir de hoje, de Deus Hipotético.
A vila, com exceção de Cético, que ainda não estava completamente satisfeito, exultou e uma grande festa se seguiu. Estereótipo levou meses para finalizar o que chamou de Evangelhos Hipotéticos, e rapidamente aquelas palavras se tornaram verdades absolutas, afinal, haviam sido ditadas pelo Deus Hipotético em pessoa! Os ensinamentos de Estereótipo traziam a chave para a felicidade não só terrena, mas também celestial. E os cidadãos hipotéticos os seguiam à risca.
A vila prosperou nos anos seguintes. Estereótipo, que já não era nenhum moço, adoeceu e caiu de cama. Seu jovem aprendiz, Coadjuvante, cuidou dele o tempo todo. E quando estava às portas da morte, Estereótipo chamou-o ao pé de seu leito.
– Coadjuvante, já é hora de você tomar conta de tudo. A mensagem foi passada, e só tenho mais um ensinamento a transmitir antes de minha morte.
– Sim, o que é mestre?
– Eu nunca falei com porcaria de divindade nenhuma – Pausa para a tosse. – Nada do que está escrito sobre isso nos Evangelhos Hipotéticos é verdade. Eles precisavam de respostas que eu não podia dar, e simplesmente inventei-as. Eles ficaram felizes com minhas mentiras, e pude manipulá-los para alcançar a paz que tanto prezamos. É hora de você continuar com essa história. Abandone o nome que tens, e adote um novo. A partir de hoje, deixas de ser Coadjuvante e torna-se Protagonista. – E em seguida o velho morreu.
O recém nomeado Protagonista ficou ao lado de seu mestre por bastante tempo, meditando a respeito do que acabara de ouvir. Horas depois saiu da casa e convocou nova reunião, onde contou que, no leito de morte do velho Estereótipo ele recebeu a visita do Deus Hipotético em pessoa, que o nomeou como seu sucessor. Portanto, a partir daquele dia ele seria o Novo Estereótipo, o representante terreno do Deus Hipotético.
E como primeira medida, Protagonista revisou os Evangelhos Hipotéticos, adequando-os à nova realidade. Criaram-se assim os Evangelhos Estereotipados, que alguns (liderados principalmente pelo filho de Cético, Crítico) viram como um veículo para que Protagonista tivesse mais poder, mas eram uma minoria, e logo suas vozes foram abafadas. Em poucos anos a Instituição criada pelo Protagonista já englobava não só a vila Hipotética, mas também todo o Vale da Hipótese. E sua palavra era lei, mesmo quando poucos entendiam suas razões. Protagonista enriqueceu e prosperou, mesmo sua terra ficando cada dia mais empobrecida e abandonada. Mas a isso ele retrucava que de que adianta uma fartura nesta terra, se o que realmente interessava era a eternidade ao lado de nosso querido Deus Hipotético?
E a maioria aceitava muito bem esse destino redentor. Com o crescimento desenfreado do número de fiéis, o Novo Estereótipo logo tratou de nomear ajudantes entre os que provavam sua verdadeira fé mais fervorosamente, que ele chamou de Ortodoxos. A eles era dada a missão de converter os infiéis Heterodoxos, que lutavam pelos antigos ideais do Velho Estereótipo, por bem ou por mal. Foi uma época triste, com muitos supostos Heterodoxos sendo torturados e mortos. Cético e seu filho Crítico não escaparam, assim como seus primos diretos, Racional e Coerente.
Até que, certo dia, um rapaz com ideias novas surgiu.
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(Conclui amanhã)