09 março 2007

Sobre ler e escrever


Sou constantemente abordado por aspirantes a escritores e outros leigos com uma pergunta cuja resposta é tão subjetiva que invalida toda sua utilidade prática: Como é que você faz para escrever?

Não tenho nem a experiência nem a bagagem necessária para responder essa pergunta de maneira indefectível. Duvido que qualquer escritor tenha. O tal "como" da questão é extremamente particular. Tem gente que escreve apenas no silêncio absoluto, outros só com a cacofonia cotidiana zumbindo em seus ouvidos. Há quem escreva pelado, em cadernos de folhas recicladas, nos botecos, etc.

Claro, estou sendo injusto que meu inquiridor. A questão não é essencialmente o ritual que cada um faz para escrever, independente dos interesses folclóricos do indivíduo. Mas ela pode ser quase sempre traduzida por: "Como é que você faz para criar uma história completamente do nada?".

Não tiro, respondo sempre. Tudo tem uma origem, nem que seja apenas subconsciente. Somos repositórios de memórias, impressões, sentidos e sentimentos. Fica tudo ali, escondidinho em nosso sistema límbico, um banco de dados de referências úteis e inúteis que acessamos sempre que queremos. É dali, do baricentro de nosso cérebro, que os escritores tiram as ferramentas necessárias para contar uma história.

Tá, meu questionador diria, isso não é nenhuma novidade! Não ajudou absolutamente nada. Será que este cabeludo sem noção estaria dizendo então que qualquer um poderia se tornar um escritor? Sim, com certeza! Como tudo na vida, a escrita profissional é algo que qualquer um, via de regra, pode fazer caso se interesse e se dedique o suficiente. Claro, você pode se tornar um bom ou mau escritor dependendo do próprio talento natural, mas um mau escritor ainda é um escritor. Mas, para variar, divago.

Uma das respostas que mais se ouve a este questionamento é o inevitável "Escritor tem que ler muito", com algumas variações aqui e ali. Será? Será que é mesmo assim fácil? Quando eu era moleque (e, conseqüentemente, tinha tempo livre) era um autêntico caruncho de biblioteca. Lia de tudo, vários de uma vez. Aos quatorze anos minha média era de 9 a 10 livros por mês (Ah, saudades da era pré-internet...). Nesta época comecei a trabalhar junto de minha mãe em (adivinhem?) uma locadora de livros. Nem preciso dizer que meu trabalho lá era, junto com atendimento ao público e idas ocasionais ao banco, ler. Eu lia todos os lançamentos que chegavam na semana, não só por prazer, mas também para saber o que recomendar para quem (Ah, saudades da era pré-CRM). Foram quatro anos de leituras vorazes. Eu estava quase me tornando parte do cenário pequeno burguês de Moema, o "cabeludo leitor da Toca (da Leitura)" que ficava quase o dia inteiro sentado na frente da locadora, sempre devorando um livro.

Ah, o leitor sagaz deve estar pensando, então é verdade! Para se tornar um escritor deve-se ler muito. Pode ser, pode ser. Mas não pulemos para as conclusões ainda. É óbvio que a leitura proveu a bagagem para que eu me tornasse um escritor. Quando comecei a rascunhar meus primeiros textos, aos 16 anos, foi a experiência adquirida em páginas e páginas de livros que me deram a base para saber, ao menos intuitivamente, a estrutura básica de uma narrativa, as formas de descrever uma cena, personagens, etc. E só. Todo o resto eu tive que redescobrir por conta própria, com muita prática e repetição. Até hoje faço experiências narrativas com o intuito de avançar na técnica e no estilo. Infelizmente sou um proletário das 8:30 às 17:15hs, e o pouco tempo que tenho livre preciso decidir se leio ou se escrevo (ou se jogo videogame, ou se brinco com o cachorro, ou...). Isso diminuiu minha média de leitura anterior para pífios 2 livros por mês. Isso num mês bom, veja bem.

Mesmo assim eu continuava papagueando o mantra do "Escritor tem que ler muito" para todos que me perguntassem como eu fazia para escrever. Até que hoje me deparei com a seguinte afirmação (os grifos em itálico são meus):

"A leitura impõe ao espírito pensamentos que, em relação ao direcionamento e a disposição dele naquele momento, são tão estranhos e heterogêneos quanto é o selo em relação ao lacre sobre o qual imprime sua marca.

(...) Desse modo, o excesso de leitura tira do espírito toda elasticidade (...). O meio mais seguro para não possuir nenhum pensamento próprio é pegar um livro nas mãos a cada minuto livre. Essa prática explica por que a erudição torna a maioria dos homens ainda mais pobres de espírito e simplórios do que são por natureza, privando também seus escritos de todo e qualquer êxito".
(A citação aí em cima foi retirada do ensaio A Arte de Escrever, do filósofo alemão Arthur Schopenhauer (1788-1860), compilado e traduzido por Pedro Süssekind e lançado o ano passado em edição de bolso da L&PM)

Então espera aí! Quer dizer que, de acordo com Schopenhauer, é exatamente o oposto? Será? Uma parte de mim (a parte hedonista) está em festa desde a primeira leitura do texto, ainda no livro. A outra (a parte estúpida) sente-se um pouco frustrado por, ainda de acordo com Schopenhauer, ter perdido tanto tempo em um monte de livros idiotas que tudo o que fizeram por mim foi me privar de um raciocínio próprio e isento! É claro que só o fato de eu ter descoberto isso lendo um livro já tira bastante do peso por conta desta contradição. Mas ainda sim é algo a se pensar.

Ultimamente tenho percebido uma tendência em meus hábitos literários. Antigamente eu me forçava a ler e escrever alguma coisa todos os dias. Era quase uma auto-flagelação em determinados momentos. Hoje não. Hoje escrevo quando tenho o que dizer e leio por diversão. Sem nenhuma imposição. Faço por prazer (pausa para uma cambalhota de meu lado hedonista). Por exemplo, se eu visse essa figura há alguns anos simplesmente entraria em desespero. Tantos autores que eu nem tinha ouvido falar! Tantos estilos que eu nunca tinha parado para analisar! Aaaaarghh!

Agora não. Vejo que tenho ainda muito para ler na vida, sim, e isso é ótimo! Mesmo que abrisse mão até das necessidades básicas eu morreria antes de ler tudo o que gostaria. E novos livros saem todos os dias. Não posso me preocupar com isso, ou então eu simplesmente NÃO ESCREVO!

Então, entre a assertiva um tanto apocalíptica de Schopenhauer e a digressão dipsomaníaca de Bukowski ("Sempre que acho que estou escrevendo mal leio os textos de outros escritores e me convenço que não estou tão mal assim"), eu digo que não interessa realmente o "como" um escritor escreve (ou gera suas idéias), mas sim o prazer que tal atividade proporciona não só a ele, mas também a seus leitores.

Independente de quantos livros se lê ou se deixa de ler por mês.

P.S.: quem ficou interessado na tal locadora de livros, cabe dizer que minha mãe a vendeu quando se aposentou. Mas ela ainda funciona lá em Moema. Para maiores informações, clique aqui.

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