30 julho 2009
Arrebatamento
Asneiras!, gritava o decano com sua voz rouca de maços e maços, sempre que recebia mais um elogio. Bajulações estapafúrdias!, guinchava, sacudindo de leve sua bengala. Todos sorriam de sua modéstia agressiva. Ele tinha crédito. Ele tinha aval. Ele havia escrito "A Penumbra Outonal". Ele havia chegado na perfeição absoluta do uso da língua. Não só isso. A associação de idéias revolucionárias entre si. A fluidez da trama ágil e ao mesmo tempo detalhada. Tudo sem exageros. Sem devaneios. Tudo perfeito. Uma obra a ser analizada por gerações e gerações.
Os poucos que o liam antes de "A Penumbra Outonal" diziam que seus textos eram bons. Bem razoáveis até. Mas ninguém nunca entendeu como de repente uma obra tão maiúscula havia surgido de um escritor tão... medíocre. Havia potencial, claro. Mas também havia obsessão. Havia uma paixão que ardia tanto que transformava o ato da criação em um parto explosivo. Mas sempre insatisfatório. Sempre autocrítico. Estava bom mas... Algo faltava. Naquela época ele ainda aceitava os elogios. Dizia que o incentivavam, mas era apenas a educação mascarando a frustração crescente. Ele podia mais que aquilo. Sabia que podia.
E então surgiu. No átimo final da crise de desespero. Em uma entrevista após o lançamento ele declarou que tinha sido algo semelhante a "um tapa de uma divindade qualquer em minha face, retirando todas as dúvidas e me mostrando o caminho". Se arrependeu por anos por essa afirmação, vendo ela sendo deturpada para fins fora do contexto original. Mas colheu em vida os louros do sucesso, coisa rara no meio artístico. Desfrutou da fama e dos prazeres por ela propiciados. Por meses a fio não escreveu uma linha sequer. Ele já podia morrer. Tinha escrito sua obraprima.
Mas não morreu. E com o tempo o vinho perdeu o sabor e o sexo se tornou um monótono clichê. E ele decidiu que era hora de voltar a escrever. E escreveu sem parar. Contos, novelas, romances. E foi sempre muito elogiado por todos seus trabalhos posteriores. Seus livros sempre vinham com "Do autor de 'A Penumbra Outonal'" em cima do título. E sempre vendiam muito.
Mas mesmo com o sucesso a amargura cresceu. A autocrítica ainda estava lá, firme e forte. Ele havia superado seus limites. Elevou a barra num patamar tão alto que não tinha mais como alcançá-la. "Eu poderia escrever sobre galinhas d'angola gagas por quatrocentas páginas e as pessoas ainda comprariam e elogiariam", reclamou ele em uma entrevista recente. E a platéia riu. Riu de sua desgraça. Riu de seu desespero.
Quando foi encontrado estava debruçado em sua escrivaninha, como que dormindo. A expressão não era da costumeira paz cadavérica, mas dura e pesada, como se ele tivesse finalmente sucumbido ao cansaço de aguardar pelo retorno daquele divino tapa que ele nunca mais levou.
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